O Homem do Prego | Dossiê Sidney Lumet
¹Por Diego Quaglia
Última atualização: 01/06/2024
O Homem do Prego (The Pawnbroker, 1964)
Roteiro: Morton S. Fine, David Friedkin, Edward Lewis Wallant
Elenco: Rod Steiger, Geraldine Fitzgerald, Brock Peters
Os filmes de Sidney Lumet anteriores a O Homem do Prego, 12 Homens e Uma Sentença (1957), Vidas em Fuga (1960) e Longa Jornada Noite Adentro (1962), marcam muito bem a relação do cineasta com a união de elementos teatrais à narrativa e com a encenação para alimentar construções que ao mesmo tempo se utilizam de uma concepção que funde tudo isso a linguagem cinematográfica e se aproveita disso nela.
O Homem do Prego até mantém contato com a linguagem teatral (cenários reduzidos, muitas cenas vitais em internas e, claro, ser protagonizado por Rod Steiger, umas das figuras chaves da atuação do método e do Actors Studio dos anos 50), mas já existe nesse aproveitamento uma utilização de locações externas, do urbano, de uma não linearidade total na montagem e um sentimento de contensão dramática que só deixa mais ardente como o sofrimento imenso do seu protagonista é fortíssimo. A ligação com o teatro já não é a característica central, estando mais de lado, para o foco primordial estar apenas no aspecto mais cinematográfico da coisa toda.
Lançado em 1965, O Homem do Prego é visto como um desses filmes que, assim como Os Anjos Selvagens, de Roger Corman (1966), ou Lilith, de Robert Rossen (1964), está entre os primeiros longas-metragens de uma pré-fase que já dava os primeiros passos na chegada da Nova Hollywood no cinema estadunidense, momento em que Lumet foi absorvido e fez alguns dos seus filmes elogiados e aclamados, como Um Dia de Cão.
O protagonista é um anti-herói, e a trama do filme é um estudo de personagem absolutamente sombrio, com o realismo cru mais seco que Lumet tanto gosta na sua obra, e que conta a história de Sol Nazerman (interpretado por Rod Steiger), um judeu sobrevivente do Holocausto que teve a vida completamente destruída por ele e vive atormentado e traumatizado pelas lembranças das atrocidades que sofreu nas mãos dos nazistas no campo de concentração. Vinte anos depois, Sol vive no Harlem em Nova York, tornou-se o dono de uma loja de penhores e assume uma postura apática, fria, amargurada, mal-humorada e cínica para lidar com todos ao seu redor, fechando-se completamente do resto do mundo e explorando os seus clientes, minorias sociais, em sua maioria.
A única pessoa que consegue ver que existe algo por trás dessa fechada é Jesus Ortiz (Jaime Sánchez), um vendedor porto-riquenho da loja que idolatra Sol. O filme se desenvolve a partir entre o envolvimento de Sol e Jesus com criminosos no Harlem, e as lembranças que atormentam a mente de Nazerman. Vemos então um filme com personagens latinos, negros, homossexuais, com cenas de nudez (foi o primeiro filme Hollywdiano a romper o código Hays de censura e mostrar os seios de uma atriz) e estupro, retratos de prostituição, criminosos urbanos e muitas coisas que ainda não eram constantes no cinema estadunidense como um todo.
As memórias que vão atravessando a mente de Nazerman, lembranças que vêm e voltam, são influenciadas por filmes como Noite e Neblina (1956) e Hiroshima, Meu Amor (1959) de Alain Resnais, ambos filmes que falam sobre a Segunda Guerra Mundial e Holocausto. Hiroshima, Meu Amor até tem uma estrutura semelhante à de O Homem do Prego. Cortes e cenas de passado e presente – e passados dentro do próprio passado – se somam e se conversam o tempo inteiro.
Essas lembranças atingem o filme com muita intensidade graças à montagem de Ralph Rosenblum, trazendo momentos em que uma violência bárbara, agressiva, física, emocional e absolutamente cruel se funde com as questões mais melancólicas e secas do dia-a-dia, como quando Sol relembra quando foi obrigado a testemunhar o estupro da sua falecida esposa no campo de concentração. O preto e branco concebido por Boris Kaufman, cheio de composições com sombras, estabelece ainda mais um sentimento de miséria, sofrimento e mal-estar urbano em cada canto desse realismo urbano machucado e triste: é uma Nova York suja e deprimente.
Lumet define que a câmera se estabeleça no filme de diferentes formas, seja ela se movendo violentamente em fúria, ou então mais lentamente, refletindo sobre a figura que trata, enquanto se aproveita demais de closes em Rod Steiger e cria momentos incríveis como o seu grito final para os céus – que não ouvimos; é abafado numa decisão extremamente inteligente, que deixa as coisas ainda mais angustiantes e profundas, como se isso fosse negado ao personagem –, em que ele finalmente desaba totalmente em desespero, abandona a sua faceta de mentira de uma vez por todas, revive a dor da perda também mais uma vez, e tem uma noção da forma mais devastadora possível de suas próprias falhas e de seu resultado.
Após isso, as lembranças dessa vida de dores e a auto-punição do protagonista se fundem na montagem também num festival de rostos que retornam para a sua mente, da mesma forma que ele, ao final, se mistura à multidão, num plano geral de teor semidocumental. A trilha sonora de Quincy Jones vai se adicionando a esse sentimento de desconforto de modo cada vez mais pulsante, até explodir nas lembranças de Sol. Que Lumet é um dos melhores diretores de atores que já existiram, e que Steiger é extremamente talentoso, qualquer um que conheça seus outros trabalhos já sabe, mas aqui a mistura dos dois rendeu o auge do ator numa interpretação fantástica, aproveitando-se de todo o filme construído a seu redor para entrar de cabeça não só numa composição muito convincente, mas num retrato muito comovente e sombrio de um homem extremamente machucado, fazendo com que cada segundo de seus silêncios e de suas falas baixas sejam de uma expressividade aterradora.
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¹ Diego Quaglia, 26 anos, é formado em cinema e audiovisual pela Universidade Anhembi Morumbi. Cineasta, é idealizador do canal de Youtube Fiz Cinema e do podcast Sábado Sem Legenda em que fala sobre um cinema tipicamente de Supercine. Ministrou aulas de direção, roteiro e produção em cursos com Marina Rodrigues e Carissa Vieira e sobre Faça a Coisa Certa do cineasta Spike Lee. Colaborou para os sites Cineplot, SeriousCast e ArteCines. Colabora ocasionalmente para os sites Cinem(ação), de Raissa Ferreira e outros veículos. Siga seu trabalho no X (Twitter), Instagram e Letterboxd.
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