O Mágico Inesquecível | Dossiê Sidney Lumet
Por Lucas Henrique
Última atualização: 15/06/2024
O mágico inesquecível (The Wiz, 1978)
Roteiro: Joel Schumacher
Elenco: Diana Ross, Michael Jackson, Thelma Carpenter, Ted Ross, Nipsey Russell, Thelma King
Todo bom musical tem pelo menos uma sequência que fica conosco. Seja pelas elaboradas coreografias repletas de movimentos impossíveis, seja pelas canções empolgantes, com letras cuidadosamente escritas em vozes perfeitamente trabalhadas. É através da música e da dança que a emoção vem à tona neste gênero que é tão fascinante quanto antigo. Como não nos lembrarmos de “The Trolley Song” e sua interpretação em Agora Seremos Felizes (1944), ou de “Don’t Rain On My Parade” no clímax de Funny Girl – Uma Garota Genial (1968), ou ainda, de “America”, no remake West Side Story (2021)?
Pois o universo de Oz no cinema não foge a esta regra. E eu não me refiro ao clássico estrelado por Judy Garland e lançado em 1939, mas sim à reimaginação setentista de Sidney Lumet, com um elenco composto totalmente por artistas negros. Baseada no musical de 1974, sucesso de público e crítica na Broadway a partir do ano seguinte, O Mágico Inesquecível (1978) reconta a jornada de Dorothy e os outros personagens criados por L. Frank Baum em uma versão alternativa da Nova York dos anos 1970.
Diana Ross aqui é a protagonista, que é tirada por um tornado de sua rua no Harlem na noite de Ação de Graças e levada para o fantástico mundo de Oz junto de seu cachorro Totó. Lá, ela é aconselhada pela Senhorita Um, a Bruxa Boa do Norte (Thelma Carpenter), a seguir a “estrada de tijolos amarelos” até a Cidade Esmeralda, onde encontrará o Mágico de Oz, que pode mandá-la de volta para casa. No caminho, Dorothy encontra três figuras peculiares, cada uma com um desejo: o Espantalho (Michael Jackson) quer um cérebro; o Homem de Lata (Nipsey Russell) almeja um coração; e o Leão Covarde (Ted Ross) anseia por coragem. Juntos, os quatro partem em busca do Mágico, mas antes têm de enfrentar Evillene, a Bruxa Má do Oeste (Mabel King), que quer vingança por Dorothy ter acidentalmente matado sua irmã e roubado suas sapatilhas de prata.
Basicamente, é a mesma estrutura da história já contada nos anos 1930, mas no filme de Lumet a personagem principal é transportada para Oz muito mais cedo, o que dá ao espectador menos tempo com ela em Nova York e mais mostras das peculiaridades do mundo mágico. O filme setentista é, então, bem-sucedido ao trazer ideias e conceitos diferentes o bastante para formarem uma obra original. A começar pela nova proposta musical. Saem as canções do estilo clássico de Hollywood (orquestradas, com inspiração na música de concerto) e entram criações de instrumentação mais livre, com influência de gêneros populares, como o soul, o gospel e o blues, por natureza ligados a compositores e intérpretes negros. É o caso de “He’s the Wiz”, cantada pela Senhorita Um (a Bruxa Boa do Norte) em sua única cena, e também de “No Bad News”, também na primeira e última aparição da Bruxa Má do Oeste.
As duas cenas funcionam muito pela qualidade das canções (que já vinham do musical encenado no teatro) e pela habilidade das intérpretes, é verdade. Mas é notável também a forma como Lumet trata estes momentos a partir das ferramentas do cinema. Sua direção é discreta, mas nem por isso menos inteligente. Em “He’s the Wiz”, à medida que a Senhorita Um segura Dorothy pela mão e lhe indica o caminho para Oz, nós, o público, também somos imersos naquele universo por meio de elegantes tracking shots que seguem as personagens, ou por derivações da câmera mostrando os bailarinos e sua divertida coreografia. Já “No Bad News” é filmada de uma maneira diferente, com a câmera quase sempre mantendo um enquadramento simétrico, de forma a acentuar o controle tirânico exercido pela Bruxa Má do Oeste em sua “fábrica de suor”. Além de serem duas canções que auxiliam estrategicamente no avanço da narrativa por indicarem o caminho da protagonista e a personalidade sui generis da vilã, ambas se tornam também cenas de genuíno entretenimento, principalmente por serem uma vitrine para o talento dos profissionais trazidos para a produção.
Tanto nos figurinos quanto no design de produção, a concepção desta versão de Oz é muito colorida, porém com uma proposta urbana distinta, que combina muito mais com a Nova Hollywood e o espírito do cinema dos anos 1970. Os tecidos parecem sobrar, como se fossem reutilizados, e as estruturas aparentam estar gastas, dando a impressão de um mundo mágico já explorado à exaustão. Tal qual a versão de 1939, os cenários são obviamente construídos, e fica nítido que toda a ação é gravada em estúdios continuados no horizonte através de matte painting. Há também exemplos de especial criatividade visual, como o desenho do figurino, os movimentos e a voz dos corvos que controlam o Espantalho no momento em que o conhecemos, ou a assustadora cena na estação de metrô, quando as marionetes de um mascate se tornam gigantes cambaleantes que perseguem Dorothy e seu trio de amigos. Tudo isso amplia o universo de fantasia sem infantilizar o filme, o que faz de “O Mágico Inesquecível” uma obra com identidade própria, facilmente distinguível das outras produções baseadas no livro de L. Frank Baum.
Entretanto, o filme não funciona melhor apenas por uma má decisão de casting relacionada à protagonista. Michael Jackson, Nipsey Russell e Ted Ross estão muito bem em seus papeis coadjuvantes (especialmente o primeiro, com sua voz inocente e movimentos graciosos). O mesmo se pode dizer de Richard Pryor e Lena Horne, que têm pouco tempo de tela, mas ainda assim impressionam pela força dramática que imprimem ao Mágico e a Glinda, a Bruxa Boa do Sul, respectivamente. Mas Diana Ross, na contramão de todos os colegas, parece deslocada. Embora ela seja uma exímia atriz e cantora, e também se saia muito bem nas elaboradas coreografias em conjunto, a intérprete nunca convence como uma jovem e inocente professora transportada para um mundo mágico, nem tanto pela assimetria de 9 anos entre personagem e atriz, mas pelo peso excessivo que Ross dá à protagonista do filme. Ela não tem a leveza de movimento que a personagem pede, o que nos convenceria da confusão de Dorothy ao entrar em um universo totalmente novo. Tampouco vemos no rosto e nos olhares de Ross a delicadeza que se espera de alguém que prontamente aceita a fantasia de Oz; pelo contrário, em todos os close-ups da protagonista, vemos Dorothy com o semblante tenso e marcado, como se ela na verdade estivesse envolvida em um melodrama trágico.
Apesar disso, o filme ainda consegue superar essa má decisão da pré-produção ao propor ao público um olhar para o maravilhoso protagonizado por pessoas negras. Com esta especificidade étnico-racial, a mesma trama já levada às telas de cinema várias vezes antes ganha novos contornos. A própria viagem de Dorothy para um local exclusivamente composto por pessoas negras é sintomático de um possível caminho alternativo para as desigualdades do “mundo real”, embora isto não seja diretamente explorado no filme. Porém, uma alusão muito mais explícita à realidade social afro-americana vem no clímax do enredo, quando, após matar a Bruxa Má do Oeste, Dorothy e seus amigos se juntam aos trabalhadores outrora escravizados por Evillene para celebrar a tão aguardada liberdade com a canção “A Brand New Day (Everybody Rejoice)”. Há um claro subtexto relacionado tanto ao fim do período escravocrata quanto à conquista dos direitos civis nos anos 1960. Embora este momento já esteja presente na versão teatral, a decupagem precisa de Lumet e a presença de astros mundialmente conhecidos como Diana Ross e Michael Jackson transformam o momento em uma forte exaltação da experiência coletiva negra no cinema.
O Mágico Inesquecível demonstra o indiscutível talento de Sidney Lumet, em um filme que, se não consegue superar o clássico da MGM, ainda é capaz de deixar sua marca no repertório dos musicais. O título brasileiro não poderia ser mais apropriado.
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Lucas Oliveira é jornalista formado pela UFMG e crítico de cinema. Já cobriu o Festival do Rio e a Mostra de Tiradentes. Atualmente é Assessor de Imprensa da Fundação Clóvis Salgado (BH) e votante no Latin American Critics’ Awards for European Films, da European Film Promotion.