
O Mágico Inesquecível ou a defesa da releitura de um clássico afrocentrado | Dossiê Sidney Lumet
O Mágico Inesquecível (The Wiz, 1978)
Roteiro: L. Frank Baum, William F. Brown, Joel Schumacher
Elenco: Diana Ross, Michael Jackson, Nipsey Russell, Ted Ross
Texto anteriormente publicado no blog Meu Filme do Dia
Dirigido por Sidney Lumet e lançado em 1978, “O Mágico Inesquecível” é muito mais do que uma adaptação de “O Mágico de Oz”; é uma obra que celebra a cultura afro-americana, transforma a fantasia em um discurso político e redefine a jornada de Dorothy e seus amigos. Neste texto em homenagem a Lumet e em defesa desta produção subestimada, quero explorar como o filme, com seu elenco afrocentrado e sua narrativa repleta de simbolismo, vai além de uma simples releitura odiada por uns e celebrada por outros. Destacarei também a importância de Diana Ross, sua parceria com Michael Jackson, a riqueza visual e musical da obra, assim como seu impacto cultural.
Uma Fantasia Afrocentrada e Política
Lançado em 1978, “O Mágico Inesquecível” se destaca por transformar o Kansas rural em Harlem e transportar a narrativa para uma Nova York mágica e estilizada, refletindo a experiência urbana afro-americana. Aqui, a jornada de Dorothy é moldada por temas que dialogam diretamente com as lutas e aspirações de uma comunidade historicamente marginalizada.
O Harlem, com suas ruas vibrantes e grafitagens, representa uma releitura simbólica e social do cenário original. As crianças presas como castigo, a classe trabalhadora explorada dos Winkies por Evillene (Mabel King), a versão da Bruxa Má do Oeste e a extravagância da Cidade Esmeralda são mais do que cenários: são comentários visuais sobre desigualdade, resistência e autoafirmação. A obra não apenas conta uma história de autodescoberta; ela a entrelaça com a luta por dignidade e identidade de uma população que sempre precisou se reinventar para sobreviver.
Isso pode ser sentido nas músicas de Quincy Jones, já que elas ecoem uma sonoridade diferente das do clássico de 1939, ressoando profundamente na comunidade negra ao misturar soul, funk e R&B para criar um discurso sonoro que conecta a fantasia à realidade vivida. Mais do que uma trilha sonora, a trilha no longa ajudou a consolidar a influência da Motown e da cultura afro-americana no cinema musical, um legado que reverbera até hoje.
Diana Ross e Michael Jackson: Estrelas em Transformação
A escolha de Diana Ross como Dorothy gerou polêmicas na época, principalmente por causa da sua idade. Muitos críticos argumentaram que ela não se encaixava no papel de uma jovem, ignorando que, para muitas mulheres negras, os grandes momentos e oportunidades na vida frequentemente chegam mais tarde do que para suas contrapartes brancas. Em uma sociedade que historicamente restringiu seus caminhos, seja na arte, na educação ou na ascensão profissional, a jornada de Dorothy interpretada por Ross se torna ainda mais simbólica.
Longe de ser apenas uma jovem ingênua perdida em um mundo mágico, sua Dorothy é uma mulher que já carrega consigo experiências, inseguranças e o peso das expectativas alheias. Sua busca pelo caminho de volta para casa ganha uma dimensão mais profunda: não é apenas um retorno físico, mas uma jornada de autoconhecimento e validação. E é justamente essa maturidade que faz com que sua performance na canção Home seja tão arrebatadora, pois não é apenas uma canção sobre voltar para casa, mas sobre finalmente se reconhecer e se aceitar.
Michael Jackson, em sua estreia no cinema, brilha como o Espantalho. Sua atuação vai além da dança e da música. Ele transmite vulnerabilidade e carisma ao representar um personagem que internaliza as mensagens derrotistas que os urubus repetem. É impossível não traçar paralelos entre as inseguranças do Espantalho e a realidade de um povo que, por séculos, ouviu que não era capaz e digno. Jackson está visivelmente à vontade no papel, e sua performance é também um dos pontos altos do filme.
Juntos, Ross e Jackson dão vida a uma parceria musical e narrativa que encapsula tanto a magia do filme quanto sua mensagem de superação e empoderamento. Mais tarde, essa mesma essência seria vista em outras produções afrocentradas que valorizam o protagonismo negro, como “Dreamgirls”, de Bill Condon (2006) e, mais recentemente, “Pantera Negra”, de Ryan Coogler (2018).
Sidney Lumet: O Grande Mestre por Trás da Magia
Lumet foi uma escolha inesperada para a direção de “O Mágico Inesquecível”. Após a saída de John Badham, que rejeitou a escalação de Diana Ross, Lumet assumiu o projeto sob o olhar cético de muitos. Isso porque, ao contrário de diretores acostumados ao gênero musical, ele era conhecido por seu trabalho em dramas intensos e sociais, como “Doze Homens e uma Sentença” (1957), “Serpico” (1973) e “Rede de Intrigas” (1976). Sua filmografia era marcada pelo realismo, pela crítica social e por um olhar profundo sobre a condição humana, elementos que ele surpreendentemente conseguiu incorporar à obra.
No entanto, é impossível ignorar o fato de que um filme com um elenco totalmente negro, que celebra a cultura negra, foi escrito e dirigido por dois homens brancos, Joel Schumacher, responsável pelo roteiro, e Lumet, na direção. Embora ambos tenham demonstrado sensibilidade ao abordar temas como identidade e resistência, essa escolha reflete as limitações da indústria cinematográfica da época, em que até mesmo narrativas voltadas para a experiência negra ainda eram conduzidas sob uma ótica branca, como no Blaxploitation, por exemplo. Isso levanta questionamentos sobre quem detinha o poder de contar essas histórias e até que ponto essa perspectiva influenciou a recepção e as decisões criativas do filme.
Ainda assim, a presença de artistas negros nos papéis principais e na trilha sonora, como Diana Ross, Michael Jackson, Lena Horne e Quincy Jones, garantiu que o filme tivesse uma autenticidade cultural inegável. O filme pode ter sido conduzido por criadores brancos, mas sua alma e impacto pertencem inteiramente à comunidade negra que ele representa.
Cenários, Figurinos e Música: Um Espetáculo Visual e Sonoro
O visual é uma de suas maiores forças. Os cenários recriam locais emblemáticos dos EUA com uma mistura de fantasia e realismo. Cada detalhe, como os grafites nas paredes ou a luz vibrante da Cidade Esmeralda, foi pensado para conectar a história à experiência da comunidade negra norte-americana.
Os figurinos são um espetáculo à parte, e uma das mudanças mais marcantes é a substituição dos icônicos sapatos de rubi de Dorothy pelos sapatos prateados. Além de resgatar a cor original dos calçados no livro de L. Frank Baum, essa escolha dialoga diretamente com a cultura glam e disco dos anos 1970, refletindo não apenas a estética da época, mas também a própria imagem de Diana Ross. Outro fator determinante para essa mudança talvez tenha sido a questão dos direitos autorais, já que os icônicos sapatos de rubi foram criados para a versão cinematográfica de Hollywood em 1939 e permanecem protegidos por lei até 2035, já que a renovação do copyright foi feita em 1967, impedindo que qualquer outra produção utilize esse e outros elementos visuais específicos do clássico original. Inclusive, isso se refletiu no musical de 2024, “Wicked”.
Essa transição cromática, e aí já posso ter entrado no âmbito da suposição, talvez remeta ao universo do Blaxploitation, movimento lá do início dos anos 70 que pode ter influenciado os autores da nova versão a trazer narrativas negras e visuais urbanos estilizados. Um exemplo dessa conexão é o figurino do vampiro negro em “Blacula”(1972), cuja capa teve seu forro vermelho substituído pelo prateado, um detalhe que, assim como os sapatos de Dorothy, representava um visual sofisticado e futurista dentro do cinema negro da época. O filme absorve essa influência, não apenas na estética, mas também na forma como reconstrói um clássico sob uma perspectiva negra, criando uma experiência visual rica e marcante, em que a moda não apenas veste os personagens, mas também comunica a essência de um mundo afrocentrado e estilizado.
Já a parte musical, assinada por Quincy Jones, eleva o filme a outro nível. Com influência da Motown, Jones trouxe uma trilha sonora poderosa que abraça ritmos afro-americanos como soul e funk. As músicas carregam emoção e energia, e até mesmo o uso do Black English em algumas letras reforça a autenticidade cultural da obra. Esse cuidado sonoro é uma das razões pelas quais a revisão consegue ser, ao mesmo tempo, uma fantasia escapista e um discurso político enraizado na realidade.
A Reinvenção de um Clássico em “O Mágico Inesquecível”
A jornada de Dorothy, o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão ganha novas camadas quando vista sob a perspectiva da luta racial. Cada personagem reflete um aspecto dessa experiência, como as inseguranças, a coragem reprimida, a busca por valor próprio e a força coletiva necessária para superar desafios.
Até as bruxas foram repensadas, desde a aparência até a ordem de aparição, para se alinhar a essa nova perspectiva. O mágico, vivido por Richard Pryor, é um impostor, mas ainda assim inspira transformação. Sua incapacidade de realizar milagres não diminui seu impacto, pois ele ajuda os personagens a reconhecerem a força que sempre existiu dentro deles. Isso culmina na aparição de Glinda, interpretada por Lena Horne, que declara que Dorothy sempre teve o poder de voltar para casa.
É também por isso que, mais do que uma releitura de “O Mágico de Oz”,”O Mágico Inesquecível” é uma obra de arte que celebra a cultura negra, questiona estruturas de poder e inspira autodescoberta. Desde o Harlem mágico até a trilha sonora, cada elemento do filme é um tributo à força, à resiliência e à beleza da experiência negra.
Embora tenha sido subestimado em seu tempo, o filme vem ganhando cada vez mais fãs, resistindo, assim, ao teste dos anos. Mais do que um filme, ele se tornou um símbolo de representatividade, resistência e reinvenção, provando que histórias clássicas podem (e devem) ser contadas a partir de diferentes perspectivas.
Afinal, como a canção Home nos lembra, o verdadeiro lar não é um lugar, mas um estado de pertencimento. E é justamente esse sentimento que torna “O Mágico Inesquecível” uma experiência única e atemporal.
Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.
Tati Regis é recifense, licenciada em Artes Visuais, entusiasta do gênero horror, tema que pesquisa e estuda avidamente. Produz conteúdo sobre o tema, com atenção nas questões de gênero e raça. Escreve para seu próprio blog e também é colunista no site Horrorizadas, 365 Filmes de Horror e Filmicca. Pesquisa pautas para o podcast Mundo Freak, participou com artigos para o livro “O Melhor do Terror dos Anos 90”. Ministrou pelo MIS-SP junto com Queops Negronski e Carlos Primati o curso A História do Cinema de Horror Negro e colabora como curadora e júri para festivais de cinema.