O príncipe da cidade | Dossiê Sidney Lumet

Por Matheus Monteiro
Última atualização: 30/06/2024

O príncipe da cidade (Prince of the city, 1983)

Roteiro: Jay Presson Allen, Sidney Lumet

Elenco: Treat Williams, Jerry Orbach, Richard Foronjy

A busca pela sobrevivência e lealdade na dinâmica de poderes das autoridades urbanas

Na complexidade do cenário urbano, onde autoridades exercem poder e influência, a busca pela sobrevivência muitas vezes se entrelaça com dilemas morais e lealdades questionáveis. O Príncipe da Cidade, dirigido por Sidney Lumet, mergulha nessa dinâmica ao explorar a ambiguidade ética do protagonista, Daniel Ciello (interpretado por Treat Williams), um detetive/policial de Nova York, que lida com culpa, ansiedade e tensão durante uma investigação de corrupção dentro do sistema de manutenção da lei e da ordem pública, e do combate à criminalidade urbana.

Lançado em 1983 e inspirado em uma história real, o filme é uma adaptação do livro homônimo escrito por Robert Daley. Seguimos a jornada do detetive Ciello, que inicialmente demonstra sucesso e estabilidade profissional através de subornos e atividades ilícitas, e logo surge para ele a possibilidade de cooperar com autoridades federais para expor a corrupção dentro de seu próprio departamento. O dilema moral se intensifica quando ele precisa, não apenas desafiar o “código” da polícia, mas também colocar em risco sua lealdade, bem como a vida da sua própria família e dos colegas ao seu redor.

 

Sidney Lumet conduz o filme com maestria e simplicidade estética, destacando um roteiro rico, em camadas que exploram não apenas a trama policial, mas também as nuances psicológicas do personagem e suas complexas relações sociais e políticas, em situações que refletem a humanidade (e a falta dela) na dinâmica de poderes públicos e jurídicos. Com uma grande carga de informações e densidade dramática, a obra abre diversas possibilidades de olhares e reflexões sobre os temas apresentados e sobre sua própria linguagem. A narrativa se desdobra em diversos gêneros, desde o drama épico até o suspense policial e filme de tribunal, em contextos e problemáticas sociais que permeiam o cenário urbano. Lumet utiliza a ambientação cinzenta da cidade e seus prédios, cenários de escritórios, e diálogos intensos para capturar a tensão moral que define as escolhas de Ciello em relação a seus colegas.

O PRINCIPE DA CIDADE DOSSIÊ SIDNEY LUMET

Com quase três horas de duração, a força do filme está no texto impecável, que foi indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado, além de outras premiações. Divide-se em capítulos, cada um introduzindo personagens através de cartelas de texto com fichas de arquivos de registro profissional, e ainda alguma frase que ainda será dita nos próximos diálogos. A repetição de uma frase que se reformula em diferentes contextos nos faz compreender o dilema do protagonista e a dificuldade de se manter leal ao longo da narrativa: “Ninguém se importa comigo além dos meus parceiros”; “Ninguém te ama assim como seus parceiros”.

Ao longo da história, Ciello enfrenta um turbilhão de emoções e dilemas éticos. O detetive é o ponto central da narrativa, fazendo com o que filme explore o desenvolvimento e o estudo de personagem. Ele transita entre diferentes esferas de poder e corrupção, confrontando as consequências devastadoras de suas próprias ações, com atitudes e falas aparentemente ambíguas, mas muito bem justificadas pela complexidade do personagem que se movimenta pela cidade, e que caracteriza até mesmo o título do filme O Príncipe da Cidade.

O PRINCIPE DA CIDADE DOSSIÊ SIDNEY LUMET

O filme se destaca por sua profundidade psicológica, especialmente na caracterização de Daniel Ciello, cuja jornada emocional reflete seu profundo conflito interno, entre suas boas intenções e seus erros humanos, em seu compromisso de não delatar seus colegas. A lealdade de Ciello é constantemente testada à medida que o filme mergulha mais fundo na investigação liderada por autoridades federais, a qual não apenas reflete a corrupção dentro do departamento, mas também as complexas dinâmicas de lealdade, traição e consciência que moldam as escolhas de Ciello. Com sua identidade e lealdade questionadas, carregado de sensibilidade, culpa, ansiedade, raiva e agressividade, Daniel se movimenta, se infiltra, manipula, e eventualmente acaba traindo seus colegas. A interpretação de Williams é essencial para transmitir essa dualidade complexa, elevando o filme para além de um simples drama policial para uma reflexão sobre a natureza humana e as consequências das escolhas do personagem e o mundo em que está inserido.

O PRINCIPE DA CIDADE DOSSIÊ SIDNEY LUMET

O Príncipe da Cidade não apenas desvela a complexa teia de poder e influência dentro do departamento de polícia, mas também oferece uma crítica social sobre a natureza da justiça e da moralidade na sociedade. Lumet utiliza uma estética realista para ilustrar com autenticidade as pressões institucionais que moldam as decisões dos personagens, onde as fronteiras entre o certo e o errado não são óbvias. O filme provoca reflexões sobre quem são os verdadeiros “bandidos” em um sistema onde privilégios e impunidades muitas vezes favorecem os poderosos. Em um potente diálogo, quando Daniel e seu filho estão pescando, a criança pergunta: “E se pegarmos uma baleia?”, e e Ciello responde: “A deixaremos livre”. Não satisfeito, o filho continua: “E se pegarmos um tubarão?”, o pai responde: “Não sei. Eu odiaria deixar o tubarão livre, pois poderia morder alguém”. A criança, indignada, encerra o diálogo: “Eu não ligo. O deixe livre”. 

O PRINCIPE DA CIDADE DOSSIÊ SIDNEY LUMET

A cena final de O Príncipe da Cidade representa bem a trajetória trágica e épica de Ciello, cuja busca por justiça e redenção o deixa marcado como a imagem e identidade de um traidor, para alguns, e de um herói moral, para outros: ao se apresentar em uma palestra, um dos ouvintes se levanta e sai dizendo “Eu acredito que não tenho nada para aprender com você”.

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Em sua essência, o filme transcende sua narrativa do gênero policial para se tornar um épico sobre dilemas morais universais enfrentados por aqueles em posição de autoridade. Ao confrontar as tensões entre lealdade e responsabilidade pessoal, “O Príncipe da Cidade” explora as complexidades éticas que continuam a colocar em conflito instituições de poderes públicos e nossas consciências. A jornada de Daniel Ciello, pelas lentes de Sidney Lumet, marca tanto a carreira de Treat Williams quanto a de Lumet, em um filme que demonstra sua excelência ao guiar seu roteiro, das palavras às imagens e sons, transformando suas ideias e temas em tramas, e a vida em cinema.

Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.

Matheus Monteiro, crítico, roteirista e professor. Graduado em cinema e audiovisual pelo Centro Universitário UNA. Desde 2017 atuando de forma independente em: produção e curadoria em projetos de cineclubes; análise/crítica; comentários de filmes em mostras de cinema; roteiro; ensino sobre linguagem cinematográfica, escrita, artes e mídias. Conheça mais do trabalho de Matheus em sua árvore de links e em seu Instagram.

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