kpop

O soft power sul-coreano e o paradoxo da beleza colonizada

Última atualização: 06/08/2021

A Coreia do Sul é uma das sociedades mais antigas do mundo. Sua longa história não impede que seja um país avançado tecnologicamente, mesmo pobre em recursos naturais. O país foi capaz de superar suas crises políticas e econômicas, resistindo a elas sobretudo por se manter firmemente fundado em um projeto de nação. Esse projeto inclui o cultivo de um tipo de influência que não se exerce pela força, mas tem altíssimo valor na bolsa de valores mundial. É o soft power sul-coreano.

Soft power é um termo que nos habituamos a não traduzir, mas que já reconhecemos facilmente quando o lemos ou ouvimos. Trata-se do conjunto de elementos culturais que ajudam a construir, de forma determinante, a imagem de um país no mundo. O Brasil usufrui de um soft power que inclui sua natureza gigantesca e exuberante, seu sol que brilha o ano inteiro e seus artistas de grande talento. Mesmo em períodos difíceis como o que estamos passando, esse capital pouco ou nada se abala.

soft power sul-coreano
Seul, a capital da Coreia do Sul, materializa a mesclagem entre tradição e contemporaneidade que o país cultiva.

O soft power sul-coreano, por sua vez, é um dos resultados do grande investimento educacional que o país tem empreendido já faz algumas décadas. Ele se compõe basicamente do K-Pop, como é conhecido o conjunto de grupos adolescentes de música pop sul-coreana; dos K-dramas (ou Doramas), que já comentei aqui no Longa História; e do cinema coreano, que inclui produções aclamadas no mundo inteiro. Esses produtos culturais de exportação reúnem-se sob o termo hallyu e trazem tanto retorno econômico ao país quanto as chaebols LG, KIA, Samsung ou Hyundai.

Soft power sul-coreano e apagamento racial

Mas o grande poder do soft power sul-coreano é exercido dentro do país. Assim como acontece no Brasil, boa parte da ficção produzida por lá espelha mais uma imagem que as pessoas elaboram sobre si mesmas do que o que de fato elas são. A construção dessa imagem está com frequência ligada a algum tipo de apagamento. No Brasil, por exemplo, o apagamento sempre teve um recorte racial. Nas raras novelas brasileiras do passado que incluíam pessoas negras, elas estavam nas posições em que a burguesia branca racista as deseja: papéis subalternos, domésticos.

Dentre outros fatores que não cabe a este texto enumerar, isso é efeito de uma colonização que inclui aspectos estéticos: aceitamos padrões de beleza impostos por países brancos e ricos, o que nos leva a não reconhecer a beleza que existe na mistura racial que define um tipo físico brasileiro, de matriz europeia, mas também indígena e africana. Por isso é que por muito tempo não se questionou o alisamento dos cabelos afro, que são crespos. Felizmente, a rejeição ao cabelo crespo tem diminuído, não na velocidade que queremos, mas seguindo um ritmo constante.

Taís Araújo
Taís Araújo é um dos nomes mais importantes da estética afrodescendente na TV brasileira atual.

Na Coreia do Sul também existe um padrão de beleza que é talvez tão rígido quanto o nosso, bem como igualmente colonizado. Ocorre que lá a relação das pessoas com esse padrão é um tanto paradoxal. Embora muitos traços considerados belos pelos sul-coreanos sejam importados do ocidente, há um julgamento corrente de que eles pertencem aos aspectos físicos de uma “raça pura” coreana. O desejo de preservação tem fundamento: menos de dez por cento da população sul-coreana descende de imigrantes. A ideia de modificar essa ancestralidade deve ser muito incômoda para eles.

O rosto ocidental do soft power sul-coreano

Por isso mesmo, é extremamente interessante que os coreanos em geral aparentemente não percebam a influência gigantesca da ocidentalidade na estética que idealizam.

Vou enumerar os principais critérios sul-coreanos de beleza física. Para o rosto, a delicadeza dos traços é imprescindível. A cabeça deve ser pequena em relação ao corpo. O rosto deve ter o formato V-line, ou seja, ser em forma de V. As sobrancelhas devem ser retas. O nariz não deve parecer “afundado”, curvado para baixo, como um escorregador. Eles preferem um “nariz alto”, “que segure os óculos”, como descreve a apresentadora deste vídeo sobre brasileiras na Coreia do Sul. Os olhos devem ser grandes, algo muito inusitado para um país asiático.

soft power sul-coreano
O grupo de Kpop BTS dita tendências estéticas e de moda para a juventude coreana.

Outra ocidentalização – e observem o detalhismo do padrão estético sul-coreano – é algo que nenhuma pessoa fora do país deve imaginar: é essencial que a pálpebra inferior seja saliente; ela deve ser como uma pequena bolsa logo abaixo dos olhos, dessas que nós ocidentais temos normalmente. Essa bolsa é outro elemento do rosto ocidental que os sul-coreanos apreciam, porque ela dá a impressão de alegria e jovialidade.

Um corpo que dá trabalho ter

Quanto ao corpo, ele deve ser do tipo longilíneo, isto é, as pernas devem ser mais longas do que o tronco. As coxas femininas não devem se tocar na parte superior interna. Imagino o sofrimento das coreanas, porque quem é mulher sabe que a gordura interna das coxas exige sacrifícios sobre-humanos para desaparecer. Os corpos devem ser bastante magros: magreza é sinal de saúde para os coreanos. Num país que se habitou ao prazer do frango frito, os pobres aspirantes a modelo de beleza sofrem um bocado. Os rapazes devem ter o abdômen absolutamente definido, e sobre os homens que se expõem na mídia a exigência é gigantesca, já que nos K-dramas os corpos masculinos sem camisa aparecem com mais frequência do que os femininos.

A pele precisa ser clara e rosada. Pele clara é sinal de riqueza. Historicamente, os coreanos mais pobres eram bronzeados, porque passavam o dia trabalhando sob o sol. Portanto, era fácil saber quem era um bom partido em Joseon (nome da Coreia no passado), e essa impressão perdura até o presente.

Quem personifica esses ideais?

É interessante notar que muitos atores e atrizes que assumem o protagonismo em K-dramas não apresentam traços prototípicos dos asiáticos. Isso é muito evidente em relação aos olhos. Geralmente, protagonistas de K-dramas são homens e mulheres de olhos maiores do que os que os asiáticos normalmente apresentam. Alguns deles poderiam passar perfeitamente por brasileiros de origem não asiática.

soft power sul-coreano
À primeira vista, não se identificam traços asiáticos no ator Lee Dong-Wook.

Os atores e atrizes dos K-dramas personificam o desejo de um rosto que os coreanos naturalmente não têm: olhos grandes, pele claríssima e nariz alto. São padrões explicitamente europeus, que representam o cultivo de uma utopia estética que não poderia estar mais longe da tal pureza que os sul-coreanos defendem.

soft power sul-coreano
O ator Song Joong-Ki, 36 anos, mesmo com feições adolescentes, é um dos modelos de beleza para os sul-coreanos.

Além dos aspectos corporais que caracterizam a perfeição física sul-coreana exibida nos K-dramas, também há os que se referem à idade dos artistas. A tomar pelo que podemos assistir nas séries, personagens interpretados por atores acima dos 40 anos ou não têm vida sexual, ou, se a têm, isso nunca é mostrado. Nem um beijo eles trocam. Beijos ficam a cargo de atores com menos de 40 anos, alguns dos quais, se já alcançaram essa idade, têm uma aparência que nos dá a impressão de que são bem mais jovens. Uma honrosa exceção nesse cenário é o K-drama Should we kiss first?, que narra o romance entre duas pessoas com mais de 40 anos de idade.

O jeitinho Ullzgang de ser

Perseguir a beleza perfeita não é uma prática recente na Coreia do Sul. Por isso, não é de espantar que o desejo de ser perfeito esteticamente tenha criado um estilo de vida. Ele existe, e se chama Ullzgang, palavra que também significa “rosto perfeito”.

soft power sul-coreano
Song Hye-Kyo, hoje atriz de K-dramas, é uma das pioneiras da estética Ullzgang.

As práticas Ullzgang nasceram com uma competição de beleza na internet no início dos anos 2000. Essas competições eram públicas, e todos os usuários podiam votar nas pessoas que achavam ser mais bonitas. A ideia foi de três adolescentes de Seul: Song Hye Kyo, Lee Yu Jin e Han Hye Jin, conhecidas também como o “Trio Eun-Kwang Ulzzang”. As três acabaram se tornando atrizes, e a mais bem sucedida entre elas é Song Hye Kyo, que já estrelou K-dramas de sucesso como Descendentes do sol e Ventos de inverno, este último disponível na Netflix.

Entretanto, o soft power sul-coreano incorporou o estilo, e hoje há muitos rapazes e moças que se tornaram influenciadores Ullzgang importantes na internet, vendendo produtos juntamente com a própria imagem. Além disso, não é necessário ser coreano para ser Ullzgang. O estilo ganhou o mundo e foi se ramificando entre diferentes nacionalidades e etnias. Em resumo: a ideia de um estilo de beleza específico ganhou as redes e criou vida própria. Dessa forma, a emergência da internet e das redes sociais deu nome e forma bastante definidos aos sentimentos e expectativas dos sul-coreanos sobre si mesmos.

soft power sul-coreano
Um feito capitalista: a estética Ullzgang já alcança outras etnias.

O deus K-pop exige sacrifícios

A aparência Ullzgang tem a ver com uma maquiagem que dê um ar de saúde, cílios postiços e delineador, lentes de contato que expandem a íris, e batons aplicados de forma a não marcar o contorno dos lábios, porque isso pode dar uma aparência de mais idade, algo proibido não apenas para o padrão Ullzgang como para o modelo de beleza relacionado ao soft power sul-coreano.

O estilo Ullzgang ganhou notoriedade com a emergência do K-pop. Os K-idols, componentes dos grupos ou cantores do K-pop, são modelos de beleza para os jovens coreanos, e por isso também sofrem uma pressão gigantesca para não deixar de corresponder a esse modelo de jeito nenhum. As cirurgias plásticas, altamente populares no país, resolvem o problema de quem não nasceu com o rosto “certo”, mas o corpo sofre com uma alimentação carente, que faz falta em um organismo jovem, às vezes ainda em fase de crescimento.

soft power sul-coreano
Para muitos sul-coreanos, a K-idol Hwasa está acima do peso ideal.

A K-Idol Hwasa, por exemplo, é bastante discriminada em virtude de algumas de suas características corporais, principalmente pela tonalidade de sua pele, que não é tão clara quanto o modelo sul-coreano exige. Seu corpo mais atlético e adulto também é criticado por não ter a magreza infantil que outras K-idols cultivam. Por essas e outras razões, a cantora acumula haters inconformados com sua recusa em fazer sacrifícios para caber nos padrões do K-pop. Mas ser uma pioneira iconoclasta não é fácil, em nenhum lugar do mundo.

Não cabe a ninguém dizer quem somos

Em sua escolha pela singularidade, Hwasa parece compreender que modelos estéticos são idealizados – haja vista os traços ocidentais que os sul-coreanos tanto admiram, os quais, em vez de lhes conferirem pureza racial, os afastam de uma verdadeira beleza asiática. Recusar-se a parecer mais jovem é um reconhecimento de que a exibição artificial de juventude é uma crueldade anacrônica, e para o cantor isso é um assassinato artístico: assim que não servir mais para o mercado, ele será descartado.

Por tudo isso, resta nos perguntarmos como e por que o padrão estético ocidental, europeu, penetrou até em sociedades que não foram colonizadas por nenhuma outra civilização.

Evidentemente, isso diz respeito ao consumo de produtos e procedimentos de toda sorte que movimentam um mercado gigantesco e fazem a indústria funcionar, gerar empregos, produzir tecnologia, fomentar o turismo, impulsionar o ensino e a pesquisa etc. Mas existe uma contraparte perigosa nisso, que é a doença da ansiedade em se encaixar numa imagem absolutamente idealizada, não acessível a quase ninguém. Uma doença que pode até matar.

gisele bundchen
Para representar o Brasil nos Jogos Olímpicos de 2016, uma mulher com a qual muito poucas brasileiras se identificam.

Enfim: me parece que a única forma de, de certa maneira, desconstruir padrões estéticos alenígenas a uma sociedade, é começarmos a falar sobre eles. No Brasil, esse diálogo já acontece, e a própria indústria já aderiu a ele: fabricantes brasileiros de produtos de beleza incluem mulheres e homens de todos os tipos em seus anúncios. Não sei se esse diálogo já se iniciou na Coreia do Sul. Espero que sim, em nome da saúde mental e física de jovens que alteram seus rostos e corpos em busca de um ideal europeu, virando as costas para a beleza que já trazem de berço, e que muita gente no mundo aprecia.

Publicado Por

2 comentários em “O soft power sul-coreano e o paradoxo da beleza colonizada

  1. excelente artigo, ótima análise, inclusive no comparativo com os padrões estétivos ocidentais e brasileiros.
    parabéns

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *