o veredito dossie sidney lumet

O Veredito | Dossiê Sidney Lumet

Por Filippo Pitanga
Última atualização: 30/06q2024

O Veredito (The Verdict, 1982)

Roteiro: David Mamet, Jay Presson Allen

Elenco: Paul Newman, Charlotte Rampling, Jack Warden

Os últimos serão os primeiros

Há cineastas que possuem extrema autoconsciência de sua linguagem a cada fotograma, da fotografia à composição de cena, arte e atuação do elenco. Inclusive, em se falando de nomes mais autorais, estes costumam demonstrar ter pleno domínio também do bom uso narrativo do primeiro ao último frame de um filme. Mas o que isto significa? Quer dizer que a primeira imagem que uma obra exibe, assim que o projetor do cinema começa a jorrar luz na tela, pode englobar tudo o que a narrativa está prestes a tecer e desenrolar, de modo que o quadro geral já se encontra prenunciado e encapsulado numa única representação simbólica.

Tomemos o saudoso mestre Sidney Lumet, por exemplo, em seu filme O Veredito (1982), que, antes mesmo de qualquer imagem, já demarca o som do jogo de uma velha máquina de pinball durante os créditos de abertura. Assim, o primeiro quadro do filme revela o grisalho protagonista Frank Galvin (Paul Newman) perdendo no jogo, com um copo de bebida e cigarro aceso ao lado, apenas com sua silhueta sombreada na contraluz à plena luz do dia num bar vazio… O tempo invernal lá fora traz uma coloração cinzenta, que contrasta com algumas partes coloridas da velha guirlanda de natal esquecida  e do mosaico lateral da janela, sem esquecer do pinball em si, que já havíamos escutado antes, bem saudosista sob o tema de Embalos de Sábado à Noite.

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Independentemente se você for cinéfilo/a com maior ou menor acervo, caso a descrição acima já não tenha sido o suficiente para descrever este advogado desacreditado e dependente de álcool que serve de fio condutor, bem como toda a sua jornada do herói, vale recapitularmos. Após enfrentar sua própria firma de advocacia por discordâncias éticas, seus superiores forjaram uma acusação de compra de testemunhas contra ele que, na verdade, os próprios é que cometeram, e o protagonista não só foi preso por causa disso no passado, como perdeu sua esposa, que se divorciou dele. Agora, encontra um grande caso de negligência médica, envolvendo até a igreja, que pode vir a lhe redimir, mas será que ainda daria tempo de salvação?

Um diferencial importante de Lumet, como cineasta, é que ele não precisa focar em diálogos para explicitar tudo isso, pois imprime nas imagens o que precisa dizer. Já começa com a escalação do mito inabalável Paul Newman, na terceira fase de sua carreira, chegando aos 60 anos: um raro personagem decadente e cheio de falhas para superar em seu currículo de galã até então. E, com somente quatro sequências de projeção, Lumet já desmascara sua personagem combalida que ainda tenta manter a integridade sob mil cicatrizes de vida. Até as piadas anacrônicas de Frank são melancólicas e não estão ali para o espectador rir com ele, muito pelo contrário, são dignas de pena. Os clássicos olhos azuis irresistíveis do ator estão cobertos de colírio que ele pinga toda hora para enxergar, ainda mais em meio ao sangue que escorre de sua testa aberta, num determinado momento, por causa do ferimento que ele próprio se auto infligiu, sem querer, sob influência do álcool. A direção de arte ao seu redor complementa a contextualização e textura com o relevo de paredes descascadas do escritório e manchas de copos de bebida estourados que ele arremessou em surto.

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Lumet é um especialista em eviscerar as várias formas de opressão do sistema em quaisquer estruturas em que se apresente, desde redes bancárias, midiáticas, policiais, até mesmo, e principalmente, as judiciais. O diretor possui grande força crítica contra injustiças de tribunais e dos seres humanos e seus podres poderes por trás das instituições. Ele já havia feito um dos maiores clássicos do gênero com 12 Homens e uma Sentença (1957), mas trazer o insuspeito Newman em lugar de dúvida e total desconstrução  traz considerável diferenciação não apenas para a carreira do icônico ator, mas também para um movimento imediatamente posterior à Nova Hollywood, que já separava os cults independentes de sucessos mais comerciais, afunilando apostas de estúdios que fagocitavam as obras autorais e não deixavam elas se arriscarem no circuito, sob pena de não conseguirem viabilizar o próximo projeto. E Lumet sempre se colocou acima dessas contendas de mercado com sua autonomia e linguagem certeiras.

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Conforme a trama de O Veredito avança, a corrida contra o tempo e contra uma firma gigantesca que não sabe perder vai se tornando um thriller antes mesmo de chegar no tribunal. Sem falar nos desafios das desventuras amorosas com a personagem Laura Fischer (interpretada pela diva Charlotte Rampling, que já contava no currículo com clássicos como Os Deuses Malditos (1969), de Luchino Visconti, e O Porteiro da Noite (1974), de Liliana Cavani), e cuja presença coringa no roteiro lhe permite algumas surpresas antes do fim, como boa femme fatale emprestando do gênero noir. As cordas com que tudo vai se tecendo e amarrando começam com planos médios que se tornam aos poucos verdadeiros exercícios de resistência para o protagonista Frank Galvin, que é obrigado a correr, a perder o fôlego, a ter portas, outrora abertas, agora batidas em sua face (com ângulos de câmera cada vez mais estreitos e sufocantes para ele e para os espectadores). Ele alcança o limite de seu sufocamento quando chega a se trancar dentro do banheiro claustrofóbico só para não ouvir mais nenhuma palavra que lhe piorasse a crise de pânico da possível derrota. Mas Frank não desiste. Busca outras provas, outras testemunhas, antes de chegar ao tribunal no qual os planos irão começar a se abrir novamente.

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Aliás, para uma época como a que o filme foi realizado, em que ainda se tratava a branquitude como padrão por default, com raríssimas exceções, a produção se engaja em racializar a história com personagem negro central para o julgamento e de modo a aquiescer as diferenças que a branquitude traziam a ele – como o estereótipo do “negro mágico” , que ele próprio irá replicar, por não ter recebido o privilégio do registro médico para exercer a anestesiologia com seu conhecimento de vida muito maior do que os livros burocráticos da elite. Tudo isso poderia até estar contido no texto original do romance homônimo de Barry Reed, mas poderia jamais ter saído do papel sem um cineasta acostumado a ousadias, e um roteirista igualmente astuto, como o na época ainda jovem David Mamet (hoje nome mais do que consagrado), munido de uma adaptação enxuta e ótimas mise-en-places (ou seja, construções de situações bastantes representativas de cada capítulo em sequências e cenários que resumiam tudo muito bem). Vale citar igualmente o toque do olhar da experiente roteirista Jay Presson Allen (com cults do naipe de Cabaret (1972), de Bob Fosse, e Marnie (1964), de Alfred Hitchcock, no currículo), mas que não foi creditada na época.

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O longa-metragem foi extremamente bem recebido pela crítica e premiações, com indicações nas principais categorias, inclusive no Oscar, como melhor filme, direção (Lumet), ator (Newman), ator coadjuvante (James Mason, no papel do frio e calculista antagonista no julgamento) e roteiro adaptado (Mamet). E, se tudo isto já não é o suficiente para correr e ver ou rever essa obra que está disponível na Star Plus (agora dentro do streaming da Disney), bem como toda a filmografia de Lumet, retomemos o início desse texto, que fala sobre cineastas experientes em criar primeiros e últimos planos muito significativos para seus filmes… Fiquemos com a reflexão de que, assim como um novo dia, a luz do sol há de entrar mais uma vez em cena, e, por fim, chegará o dia de descansar recostado na cadeira de seu escritório, sob a janela da belíssima arquitetura clássica do respectivo prédio, com o som no extracampo de um telefone iluminado pelo abajur, provavelmente com sua amada do outro lado da linha, que nos relembra as elegantes pinceladas até de filme noir que este longa contém.

Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.

Filippo Pitanga é mestre pela ECO-UFRJ. Curador e crítico de cinema, advogado, professor na AIC e SESC. COLABORADORES Canal Like, Revista Fórum e Carta Capital. Podcast Reserva Imovision, Cine Raio-X e CeS. Codiretor do Cinefantasy. Siga o trabalho de Filippo pelo Instagram.

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