Os 7 de Chicago
Última atualização: 04/04/2021
No dia primeiro de abril de 2021, em entrevista ao jornalista Reinaldo Azevedo, o ex-presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva lembrou a frase que disse ao (à época) juiz Sérgio Moro em seu julgamento: “Vocês estão condenados a me condenar”. Essa frase também poderia estar na boca de algum dos personagens de Os 7 de Chicago submetidos a julgamento após um confronto violento com a polícia no dia 25 de agosto de 1968.
Durante a convenção democrata que naquele ano aconteceria em Chicago, manifestantes de diversos movimentos contrários à guerra do Vietnã se envolveram num embate com as forças de segurança da cidade. Alguns líderes desses movimentos acabaram presos e jugados por conspiração, numa evidente tentativa do governo estadunidense de criminalizar quem se opunha àquela guerra. Para isso, lá, assim como aqui, uma das iniciativas foi a de transformar seu julgamento em um grande show.
Por isso, o primeiro estranhamento que Os 7 de Chicago causa é o de que a própria crítica histórica que o filme propõe também está vestida como um grande show. Assim, o que poderia ser fonte de reflexão e mudança de pensamento no filme acaba sendo sufocado por uma pirotecnia (num sentido metafórico) que chama mais atenção para si do que o sentido relevante das falas e ações dos personagens. Mas o que fazer? Convenhamos: nos Estados Unidos tudo vira show business mesmo.
Os personagens se tornam figuras num panfleto
Admiro profundamente o diretor e roteirista Aaron Sorkin, e sempre me interesso por seus trabalhos. Eles materializam seu senso de oportunidade para sumarizar, através dos personagens, ideias essenciais para o nosso tempo. Contudo, sei que suas obras sempre carregam um peso bem maior nas palavras do que em outros elementos fílmicos. Fundamentalmente, são textos, diálogos e reflexões conceituais. Desta vez, seu senso de oportunidade chega a ser factual: num feliz cruzamento com Judas e o Messias negro, já comentado no Longa História, o Fred Hampton (Kelvin Harrison Jr.) que aparece no filme é o mesmo Fred Hampton interpretado por Daniel Kaluuya.
Provavelmente, o que saiu dos trilhos em Os 7 de Chicago pode ter sido o fato de que o filme inclui fatos que realmente aconteceram e personagens que realmente existiram, independente da veracidade do que está em tela. As críticas para o roteiro de Steve Jobs (2015) também focalizaram a verborragia dos personagens, inverossímeis em sua capacidade imediata de resposta. Ora, nem a mente mais brilhante elabora discursos tão fascinantes em milésimos de segundo. O mesmo acontece em Os 7 de Chicago. Os personagens parecem saídos de um panfleto político e estão prontos a expressar palavras de ordem (algumas brilhantes, claro) a qualquer momento. Palavras que, aliás, Sorkin deve ter levado semanas para imaginar.
Os 7 de Chicago é um show sobre um show
Por consequência, os personagens cujas ações acompanhamos se parecem mais com as vozes da mente e das certezas políticas de Sorkin do que seres humanos que realmente existiram, com contradições, medos, hesitações, frustrações e arrependimentos. Quem mais se parece minimamente com um ser humano ali é o promotor interpretado por Joseph Gordon Levitt, notavelmente constrangido em participar de uma farsa teatral. Todos os outros, com aquela altivez estadunidense que já conhecemos, estão tão formatados em suas convicções, sem nenhuma contradição ou medo, que em nenhum momento conseguimos torcer por eles ou admirar suas ações.
Mas não é apenas no tratamento dos personagens que vemos Aaron Sorkin transformar seu filme num show tão encenado quanto os fatos que pretende narrar. A construção diegética de Os 7 de Chicago também é a de um grande show, a ponto de obstruir o único elemento que de fato me impressionou no filme: a inciativa de contar a história de frente para trás, acrescentando a ela camadas de discurso que a tornam algo muito mais rico e multifacetado.
Isso se dá porque o interesse de Sorkin é na verdade pelo próprio julgamento. Assim, à medida que os eventos vão sendo descritos pelos envolvidos, intercalam-se outras versões junto com a própria encenação conforme interessa a Sorkin focalizar. Essa estrutura em camadas atende àquilo que eu já afirmei em outras críticas: a narrativa se impõe sobre uma suposta “realidade”. Além disso, a sequência pensada por Sorkin também serve à ideia fundamental do filme, que é desconstruir a versão dos fatos escolhida pelo governo estadunidense à época para atender ao interesse de jogar uma cortina de fumaça sobre os horrores da guerra do Vietnã.
Como contar uma história torna-se mais importante que a própria história
Entretanto, mais uma vez, a necessidade de construir um show para agradar o gosto do espectador estadunidense acaba abafando a linda edição que apresenta, de forma agilmente sobreposta, as diferentes versões dos eventos em Chicago. Esse abafamento se dá sobretudo com a música posta ali para provocar no espectador uma emoção que ele já está sentindo. É uma pena, porque a emoção da própria história como aconteceu já é suficiente para nos impactar, em função de todos os conhecimentos prévios que já temos sobre o que ocorre quando manifestantes e forças repressoras se encontram. A favor de Sorkin, pelo menos, em uma das cenas mais impactantes do filme, ele permitiu que as imagens falassem por si. Menos mal.
Mas esse é o jeito estadunidense mainstream de contar uma história. Acho que as pessoas por lá já entram no cinema esperando serem conduzidas pelos diretores dos filmes a algum tipo de emoção por meio de todos os recursos que o Cinema tem à disposição. Mas, é preciso dizer, provavelmente foram mal acostumados pelos próprios diretores afeitos à imposição da forma cobre o conteúdo. A questão é que, nesse caminho, eles se esqueceram de que as pessoas e suas histórias podem ser emocionantes por si, independente da forma de contá-las. Os 7 de Chicago perdeu essa chance.
Os 7 de Chicago é mais do velho e conhecido show business
Há um padrão cognitivo implícito em que o filme se encaixa: o do show business. Ao fim e ao cabo, as pessoas precisam sair do cinema em catarse. Até aí não vejo problema. Mas, de vez em quando, a catarse sufoca a força da própria história. Com isso, os personagens se tornam menos humanos e mais figuras performáticas de alguma ideologia. Os fatos perdem sua importância inerente e se tornam pretextos para o uso de recursos de manipulação da plateia. E muitos filmes assim têm sido premiados.
Em suma, o grande risco que se corre com essas escolhas é quando o show, esvaziado de qualquer sentido, se volta contra seu criador. Aconteceu no Brasil com o que se montou para condenar Lula, e também com Os 7 de Chicago. A mensagem se perdeu. A embalagem para presente a dissolveu. Virou filme para americano ver, se emocionar. Resta saber, entretanto, o que fazer com quem não se contenta apenas com a embalagem.
Os 7 de Chicago está disponível na Netflix.
Direção: Aaron Sorkin
Roteiro: Aaron Sorkin
Edição: Alan Baumgarten
Fotografia: Phedon Papamichael
Design de Produção: Shane Valentino
Trilha Sonora: Daniel Pemberton
Elenco: Eddie Redmayne, Sacha Baron-Cohen, Joseph Gordon Levitt, Yahya Adbul-Mateen, Frank Langella