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Os Donos do Poder | Dossiê Sidney Lumet

Última atualização: 30/06/2024

Os Donos do Poder (Power, 1986)

Roteiro: David Himmelstein

Elenco: Richard Gere, Gene Hackman, Julie Christie, Kate Capshaw, Denzel Washington

Antes de escrever este texto, dediquei-me à tarefa de responder à questão de como as teses de Os Donos do Poder (1986), de Sidney Lumet, sobreviveram na contemporaneidade. Eu não queria alimentar a impressão de ingenuidade política que o filme de imediato provoca, porque toda ingenuidade nesse campo traz em si um valor ético e moral do qual não devemos abrir mão nunca, muito menos nos momentos em que o cinismo toma conta das práticas micro e macropolíticas em um país.

Esse sentimento se reforçou por uma coincidência no tempo: assisti ao filme na penúltima semana de junho de 2024, pouco antes do malfadado debate entre Joe Biden e Donald Trump, este buscando reassumir a presidência dos Estados Unidos, aquele gastando suas últimas energias no esforço de permanecer no cargo por mais quatro anos.

OS DONOS DO PODER DOSSIE SIDNEY LUMET

O debate foi o mais recente evento de um franco processo de fascistização daquele país, com o domínio absoluto de Trump sobre o Partido Republicano, que sucumbiu ao apoio massivo que o empresário recebeu do segmento mais obscurantista e reacionário da população dos Estados Unidos. Que sempre esteve lá, como já sabemos, mas que agora se agregou e se impõe com toda força no solo norte-americano.

Assim, de filme considerado secundário no currículo de Sidney Lumet, Os Donos do Poder emerge apresentando exemplos sobre quais elementos devem servir de baliza e parâmetro para as práticas políticas institucionais.

Vislumbro um diálogo entre o presente político nos Estados Unidos e os fatos narrados em Os Donos do Poder. Esse diálogo diz respeito não propriamente aos nazistas hidrófobos estadunidenses que planejam para breve uma rave da Klu Klux Klan. Essa gente está bastante aquém da possibilidade de qualquer conversa. Os possíveis interlocutores do filme compõem um (talvez mais) gigantesco contingente de pessoas das mais diversas nacionalidades, que inconscientemente contribuem para o célere avanço do fascismo no mundo.

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Trata-se das pessoas avessas a todos os processos políticos, que generalizam a classe política reduzindo-a a um bando de corruptos, e que se recusam a votar em todas as eleições. Essas pessoas se dizem neutras e apolíticas, por isso tratam como equivalentes o pensamento e as políticas de esquerda e de direita. Infelizmente, elas não sabem que todas as ações humanas são inerentemente políticas. E mais: não conseguem perceber que a posição do topo do muro, isto é, a posição nem de esquerda nem de direita, na verdade é de direita, porque alimenta a perpetuação imutável dos estados de coisas, em vez da transformação de mundo que o pensamento de esquerda projeta.

A meu ver, é nesse campo que Os Donos do Poder encontra, na contemporaneidade, seu nicho, seu lugar. Se for possível resumir o filme a uma frase, talvez seja esta: Acredite e defenda as instituições democráticas; elas, por natureza, são paradoxais, mas sem elas seria muito pior.

O filme assume como figura central um personagem que nos acostumamos a tratar como a personificação do pragmatismo, do oportunismo: um marqueteiro. Pete St. John (Richard Gere) já de partida aparece como profissional brilhante, capaz de eleger todos os seus clientes não apenas por suas capacidades de planejamento, mas também pelo talento em dar a virada em situações adversas durante as campanhas.

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Entre as táticas de St. John, estão algumas ações típicas dos de sua profissão: o trabalho quase exclusivo com a imagem; a mudança do viés das campanhas adversárias, de preferência virando o jogo para seu campo; a exploração dos discursos circulantes, venham de onde vierem. Paralelamente à trama principal do filme, St. John cuida de outros clientes, e é nesses outros trabalhos que Lumet faz atravessar a ética do publicitário, que não cedeu completamente seus valores à fortuna amealhada ao longo dos anos.

Outro dado que assinala a presença dessa ética é a amizade com o senador Sam Hastings (E. G. Marshall), cuja retirada da vida pública faz St. John lamentar e seguir trabalhando a fim de que sua vaga seja ocupada por outra figura pública à altura do amigo.

A fidelidade a esse posicionamento o faz dizer não à proposta de Jerome Cade (J. T. Walsh), um candidato ao senado que julga não ser digno de ocupar cargo que Hastings deixou. Os motivos dessa recusa são principalmente os métodos de convencimento e controle do assessor de Cade Arnold Billings (Denzel Washington), que contrastam frontalmente com os métodos de outro candidato à vaga, o jovem e idealista Phillip Aarons (Matt Salinger), cliente de Wilfred Buckley (Gene Hackman), antigo mentor de St. John.

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O contraste entre o universo do filme e o contexto político atual está entre, de um lado, o passado que Os donos do poder descreve e os elementos de pensabilidade de sua época, e, de outro lado, os posicionamentos ideológicos que já estavam no horizonte mas só hoje participam como realidade histórica mundial. Esse contraste se materializa na fala de St. John a Aarons momentos antes do debate entre os candidatos a senado. Essa fala impactou Aarons a ponto de ele, durante o debate, comunicar ao público suas verdades mais profundas.

E essas verdades dizem respeito à grande política no sentido Gramsciano: uma política de entrega do melhor do serviço público à coletividade, de esforço genuíno dos políticos para o desenvolvimento do país, e não em função de atender a seus interesses pessoais e das pessoas físicas e jurídicas que os financiam.

Aí é que o salto das décadas soma pontos ao passado, e deixa o presente numa triste situação. Hoje, a verdade da política no Brasil e no mundo é uma verdade bolsonarista. Os candidatos mais fortes nas próximas eleições são os que repetem discursos que os identificam com perspectivas teocráticas, medievais, militaristas e agroeconômicas. E é isso que muitas pessoas querem, e é nisso em que votam.

Nesse sentido, se imaginássemos Os Donos do Poder como uma cápsula do tempo, desenterrada pelas pessoas em 2024, talvez a frase que o resume, que eu enunciei logo acima, seja a grande bússola para um caminho de diminuição do apoio popular aos candidatos que abraçam o fascismo muito por convicção, e muito por oportunismo, o que, no fim das contas, acaba virando convicção: acreditemos nas instituições democráticas; isso é o que ainda temos, além das frágeis fortalezas que nos separam da barbárie que respira quente e venenosa em nossas nucas.

Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.

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