
Pecadores
Existe uma música muito famosa que diz, “É som de preto, de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado.” Trata-se da música Som de Preto, de Amilcka e Chocolate. Ao ouvi-la, a primeira imagem que me vem à cabeça é a atriz Mariana Ximenes dançando como a personagem Raíssa, na novela América, em 2005. Essa representação de uma pessoa branca dançando uma música de origens pretas sintetiza boa parte da história da música mundial.
Com efeito, estilos musicais como o rock e o funk, que tiveram origem nas periferias do mundo e foram criados por pessoas pretas, só tiveram uma real validação quando foram apropriados por pessoas brancas. Artistas como Elvis Presley e Chico Buarque, apesar de sua relevante contribuição para seus respectivos gêneros, talvez não tivessem o mesmo espaço caso fossem pessoas pretas. Um dos poucos ritmos que ainda hoje recebe algum tipo de questionamento quando adotado por pessoas brancas é o rap. E, agora, um filme questiona isso utilizando o terror.

O terror como questionamento racial
Assim como “Corra!” (2017), de Jordan Peele, o longa “Pecadores” (2025), de Ryan Coogler, utiliza o terror como um instrumento para discutir questões raciais. Aqui estamos no ano de 1932, no estado do Mississippi, e a segregação racial era uma realidade protegida por lei. Nesse contexto, dois irmãos gêmeos, ambos interpretados por Michael B. Jordan, retornam a sua cidade natal em busca de um novo começo.
Para isso, eles compram um estabelecimento que pretendem transformar em um clube onde negros possam se reunir e celebrar. Assim, como atração, eles contratam alguns músicos para tocarem na noite de inauguração. Entre eles está Sammie Moore (Miles Caton), conhecido como Pastorzinho, por ser filho de pastor. Apesar de muito jovem, ele é um excelente músico de blues. Além disso, segundo uma lenda, existem pessoas que criam uma música tão pura que são capazes de invocar espíritos de diferentes épocas. Entretanto, criaturas malignas podem sentir tal poder e tentar encontrar sua origem. É o que acontece quando o Pastorzinho toca.
Em “Pecadores”, a música tem origem preta
A partir dessa premissa, misturando boa música, protagonismo negro e vampiros, “Pecadores” aborda a cultura negra de uma forma única. Contudo, sem ser panfletário, o filme mostra os desafios enfrentados pelas populações marginalizadas da época, que não se compõem apenas de pretos. Nesse sentido, o mais interessante é ressaltar que, apesar de sofrermos preconceitos, com lugares delimitados diferenciando-se dos lugares dos brancos, nós ainda tínhamos nossa própria cultura, que engrandecia os nossos. O maior símbolo disso é o blues, que está em todo canto por onde os personagens passam. O filme mostra também que o estilo tinha relações fortes com a Igreja, simbolizadas pela origem de Sammie como filho de um pastor. Portanto, trata-se de uma comunidade marginalizada, mas não fragilizada, como algumas produções de época retratam.

Tudo isso aparece no roteiro de forma muito natural. Dessa maneira, não temos aqueles momentos em que os personagens param e fazem um monólogo cheio de emoção, resumindo a mensagem do filme. Como, por exemplo, o monólogo sofrido de Lupita Nyong’o em “12 Anos de Escravidão” (2013), de Steve McQueen. A produção retrata os acontecimentos do período de forma fidedigna, o que inclusive deu a Lupita o Oscar de Atriz Coadjuvante, mas já estamos cansados de representações sofridas e implorando por nossas vidas.
Em “Pecadores”, o discurso está no dia a dia. Por exemplo, o filme exibe uma rua na qual cada um dos seus lados é exclusivo para uma determinada cor; mesmo assim, as pessoas pretas tinham sua própria linguagem, que era tão poderosa, ou mais, do que a do outro lado. Tanto que, anos mais tarde, vemos uma atriz branca dançando “Som de preto” no horário nobre da maior emissora do Brasil.
“Pecadores” traz referências da arte preta
“Pecadores” também faz referência a outras formas de representação da cultura preta. Só para ilustrar: um dos momentos-ápice do filme é a cena da apresentação de Sammie. Ela é “A” cena do longa. Diversos momentos musicais e o cenário do lugar do encontro têm como referência visual o quadro The Sugar Shack, de Ernie Barnes. A pintura representa uma multidão de homens e mulheres negros com corpo alongado dançando. Pintado em 1976, o quadro foi arrematado em um leilão em 2022 por 15,3 milhões de dólares. Ele também estampou a capa do disco I Want You (1976), do cantor de soul music Marvin Gaye, outro grande representante da música negra.

Do prazer de se ver nas telas
Fui ao cinema assistir a “Pecadores” achando que seria apenas mais um filme de terror. Havia visto muitos comentários positivos a respeito. Mas, como na maioria das vezes os títulos de “melhor do ano” não condizem com a realidade, e são mais uma jogada de marketing, achei suspeito. Felizmente, desta vez eu estava enganado. O filme foi me conquistando aos poucos, à medida que identifiquei as mensagens e as referências que foram surgindo. Foi aquela sensação, que não tinha há muito tempo, de ter vivido uma experiência única no cinema, de ter visto algo incrível, e realmente foi.
Por fim, é ótimo ver o trabalho de Ryan Coogler não apenas manter sua consistência e discurso identitário como em “Creed: Nascido Para Lutar” (2015) e “Pantera Negra” (2018), mas também chegar ao terror de forma tão contundente. É lindo se reconhecer na tela. Ver pessoas pretas na frente e por detrás das câmeras de forma tão imponente.
Ficha Técnica

Direção: Ryan Coogler
Roteiro: Ryan Coogler
Edição: Michael P. Shawver
Fotografia: Autumn Durald Arkapaw
Design de Produção: Hannah Beachler
Trilha Sonora: Ludwig Göransson
Elenco: Michael B. Jordan, Miles Caton, Saul Williams, Adrenne Ward- Hammond