plano 75 imagem Michi

Plano 75

Talvez haja spoilers capazes de enfraquecer sua experiência de assistir ao filme.

Assistir continuamente a filmes realizados por cineastas de diferentes países, principalmente os que retratam outras realidades sociais, às vezes não está muito longe da impressão de realizar uma viagem ao exterior. Esse sentimento fica ainda mais forte quando a gente conhece variados modos de fazer cinema fora do padrão estadunidense. Tais pensamentos me visitam a mente junto com a experiência de assistir a “Plano 75”, de Chie Hayakawa (2022). O filme esteve na Mostra São Paulo no mesmo ano, mas só agora está sendo lançado em circuito brasileiro.

Obra de estreia da diretora em longas, “Plano 75” representou o Japão no Oscar 2023. Roteirizado também por Hayakawa em parceria com Jason Gray, o filme chega ao Brasil justificando sua escolha. Com efeito, não posso deixar de pensar que, tivesse sido lançado ano passado, aí “Plano 75” teria de competir com monstros metafóricos e literais. Para, no fim, ceder lugar ao maravilhoso “Dias perfeitos“, de Wim Wenders, representante do Japão ao Oscar de filme estrangeiro em 2024.

Michi e amigas

“Plano 75” segue a tradição dos filmes que recusam a espetacularização típica do cinema estadunidense comercial, que exagera em elementos provocadores de emoção. Parece que ali não se acredita na potência da história sendo contada e no talento dos atores para contá-la em parceria com o diretor. Entretanto, no cinema japonês, muitas vezes essa intensidade é construída em planos estáticos e fotografia enxuta, sem arroubos de trilha sonora ou edição. Mas se conta com a cumplicidade do espectador, porque se julga que ele é capaz de recuperar a profundidade emocional em cenas cotidianas. E também de reconhecer, sob o dia-a-dia, uma dor silenciosa, intimista, internalizada, mas não menos devastadora.

Uma tradição japonesa em “Plano 75”

“Plano 75” segue uma linha de construção fílmica já conhecida dos fãs do cinema asiático em geral, e do cinema japonês em particular. É uma linha fortemente presente em obras mais antigas, como as de Yasujiro Ozu, mas também nas mais recentes. Trata-se das questões e contradições da sociedade japonesa contemporânea atravessando a vida familiar.

Por exemplo, é impossível ao espectador de “Plano 75” não se recordar em alguns momentos da obra-prima “Sonata de Tóquio” (2008), de Kiyoshi Kurosawa, disponível na plataforma Mubi. Nos dois filmes, há a interferência destruidora que o capitalismo impõe sobre as relações humanas, deteriorando nossa capacidade de estabelecermos juntos relações de afeto, confiança e cumplicidade. Por conta disso, até algumas situações se repetem em ambos os filmes.

Michi no trabalho

“Plano 75″, aborda temas que extrapolam uma visão estrita do capitalismo. Além disso, convida o espectador a pensar no perigo que corremos, todos os dias, de transformarmos nossas sociedades em Estados de exceção, em que a necropolítica se instalará de vez no retorno de políticas públicas já execradas no passado por sua absoluta desumanidade.

Em “Plano 75”, o envelhecimento é um problema crônico

O problema que o filme enquadra tem escorregado perigosamente para a condição de crônico em algumas sociedades pelo mundo. Trata-se do envelhecimento progressivo da população, acompanhado da baixa taxa de natalidade. Consolidando a distopia que caracteriza o filme, a solução estatal para esse problema, o tal Plano 75, também com a pretensão de minimizar os assassinatos de pessoas idosas como testemunho ideológico, consiste na criação de uma política pública de eutanásia.

Oferecem-se diversas formas de morrer: sozinho, acompanhado; também se pode ser cremado em isolado, ou em conjunto. Os optantes recebem uma espécie de “prêmio” em dinheiro para gastarem como quiserem, antes de morrerem sem dor nas dependências do Plano 75.

Me pergunto em que medida as pessoas que aderem ao Plano 75 não estão mentindo para si mesmas, tentando convencer-se de que estão morrendo pelas mãos de outras pessoas, quando na verdade se trata de suicídio, em todos os casos.

O plano

O filme recorta o terceiro ano da implementação muito bem sucedida do Plano 75 em termos de economia nacional. Sobre isso, o governo chega até a pensar em diminuir a idade mínima das pessoas habilitadas a ingressar no, na falta de palavra melhor, “programa”: de 75 para 65 anos. No âmbito da vigência e, principalmente, naturalização dessa política, Chie Hayakawa define três perspectivas pessoais de observação do cotidiano das pessoas envolvidas de alguma forma no projeto.

A história de “Plano 75” em três perspectivas

Assim, conhecemos Michi Kakutami (a maravilhosa Chieko Baishô), mulher de 78 anos sem familiares. Michi inicialmente tem como companhias as amigas também idosas do trabalho em um hotel, mas todas são demitidas e acabam se afastando umas das outras. Prestes a perder o apartamento onde mora, Michi não encontra emprego, nem, portanto, outro lugar para viver.

Desempregada e correndo o perigo de se tornar uma sem-teto, Michi passa a considerar no Plano 75 uma solução definitiva para seu problema. Mas o contato com a atendente Yoko (Yumi Kawai), que ajuda os idosos no processo, pode inspirar nela o sentido daquilo que pode ser perdido para sempre.

Hiromu

Conhecemos também Hiromu Okabe (Hayato Isomura), órfão de pai, que trabalha informando e arregimentando novos optantes pelo Plano 75. A inscrição de seu tio paterno (Taka Takao) no plano provoca em Hiromu sentimentos filiais que seu próprio pai não foi capaz de inspirar. O período que antecede a eutanásia do tio é uma chance de Hiromu resgatar uma memória do pai que na infância não lhe foi permitido construir.

O terceiro vértice desse triângulo é a jovem trabalhadora filipina Maria (Stefanie Arianne). Seu desafio é  amealhar a quantia necessária para a cirurgia da filha doente que precisou deixar em seu país natal. Por isso, aceita sem pestanejar uma posição com melhor salário no Plano 75, para proceder ao deslocamento dos corpos dos idosos e à organização de seus pertences.

Início, meio e fim

Portanto, Hayakawa, junto com Jason Gray, delineia com esses três personagens os três pontos focais do Plano 75: seu início, seu meio e seu fim. Faz isso dissecando as semelhanças entre as pessoas nele envolvidas como elementos de um sistema de mundo que nos engole a todos, extirpando de nós aquilo que temos de melhor. Justamente aquilo que torna a experiência de viver algo que se deseja sorver até o fim, não importa o que se sofra e se perca.

Algo notável em “Plano 75” é que os personagens estão, na maior parte do tempo, sozinhos. Trabalham e se movimentam sozinhos. Essa solidão é algo mais profundo do que a ausência física: é uma solidão de empatia, uma dificuldade de importar-se com os outros, reconhecer que os outros passam pelos mesmos problemas que nós.

Michi e amigas

Depois que as amigas se afastam compulsoriamente, Michi só se verá entre outras pessoas quando acaba por acaso num centro de doação de sopas para pessoas necessitadas. Não por caso, está lá também um banner e um funcionário do Plano 75 para o caso de alguém se motivar.

Naquele momento, porém, Michi nem está tão necessitada de comida, mas muito provavelmente deseja apenas estar rodeada de semelhantes, na tentativa de resgatar a amizade calorosa que tinha com as colegas. Por isso é que o contato com Yoko é capaz despertar afetamentos que ela julgava já mortos.

Velhice e desalento

Auxiliada luxuosamente por Chieko Baishô, Hayakawa constrói de forma dolorida a escalada de Michi para o desalento – uso o termo aqui no sentido econômico mesmo, relacionado à desistência de pessoas desempregadas após inúmeras tentativas de encontrar trabalho. No filme, esse desalento vem acompanhado do crescente sentido de inutilidade das pessoas idosas, mesmo numa sociedade famosa no mundo todo como exemplo de respeito à sabedoria dos mais velhos.

A própria ideia de uma pessoa com 78 anos precisar ainda procurar emprego quando já devia estar em outra fase da vida já é absurda. Só aceitamos isso no filme, e também na vida, porque compreendemos que o neoliberalismo só triunfa com a progressiva desvalorização do ser humano que vem junto com a perda de diretos sociais. Nesse sentido, a criação de um programa estatal de eutanásia é, para todos os efeitos, um passo adiante, esperado e nada surpreendente, num mundo em que as pessoas existem na medida em que são úteis para ocupar algum lugar numa dada estrutura de produção de bens de consumo.

Portanto, assim como a biopolítica cria problemas para vender soluções, a necropolítica inutiliza as pessoas para depois resolver o problema de sua existência.

michi desalento

Maria e Hiromu ocupam os dois extremos temporais do processo que inclui Michi, o tio de Hiromu e as demais pessoas que optam por escolher quando e como morrer.

Estamos perigosamente perto de Auschwitz

Entrevistando e apresentando as modalidades de eutanásia à disposição das pessoas, a figura jovem e atraente de Hiromu salienta a etapa inicial do processo, desviando a atenção das pessoas de sua etapa final. Por sua vez, e invisível, Maria ocupa o estágio final do processo, deslocando corpos para outras dependências e separando pertences.

É de se notar aqui uma organização não muito diferente dos campos de concentração nazistas. Maria e Hiromu, embora trabalhem na mesma empresa, nunca se encontram, e um certamente não tem a menor ideia do que o outro faz. Consequentemente, não é inadequado imaginar que ambos não conhecem em totalidade o que é o Plano 75.

O Plano 75 é muito mais do que um mecanismo de resolução de um problema imediato. Aqui, vale dizer que Hayakawa não se preocupa em salientar se seu Japão distópico implementou, junto com a eutanásia estatal, um programa para nascer gente. Porque o que importa no filme é a condição de mundo. Essa condição é econômica, mas também é social e humana. Ela leva a uma necropolítica conduzida às últimas consequências, que é a sua instalação como política pública, semelhantemente ao holocausto nazista. Nesse sentido, reconhecer semelhanças entre o Plano 75 e os campos de concentração – note-se como os objetos das pessoas são tratados após sua morte – é algo praticamente automático.

Maria

Como um todo, “Plano 75” é um filme atravessado por conduções antagônicas, uma pessimista, e outra esperançosa. Uma, revelando que, na sociedade japonesa contemporânea (só nela?), o sentido de existência se define pela utilidade das pessoas no encadeamento estrutural do neoliberalismo. Outra, propondo o antídoto para esse utilitarismo, que é o sentido da existência como a conexão humana que tem como parâmetro a ancestralidade.

Ancestralidade é o antídoto para a utilidade

Entretanto, essa conexão ocorre não apenas nos sentido de termos ancestrais, como no caso de Hiromu, seu pai e seu tio. Ocorre também no sentido de sermos ancestrais e vivermos para construir um mundo para os que vêm depois de nós, como Maria e sua filha. Assim, Hiromu busca e depois resgata o tio, no movimento de resgatar sua própria ancestralidade. Por sua vez, Maria e sua luta para salvar a filha comprovam que a ancestralidade também é um movimento progressivo. E, igualmente, em ambos os movimentos somos responsáveis.

Somos responsáveis pelos ancestrais que temos, e igualmente por aqueles de quem seremos ancestrais. Mas não apenas em termos genéticos, mas também morais, intelectuais. Isso acontece no encontro entre Michi e Yoko. O prazer de Yoko em estar com Michi e ouvir suas histórias vem da possibilidade que as pessoas trazem em si de serem capazes de afetar e atingir as outras emocionalmente, de conectarem-se às outras sempre. Basta estarem vivas.

Michi e yoko

“Plano 75” evidencia que o resgate da ancestralidade tendo lugar em vez da utilidade pode recuperar o sentido de viver das pessoas. E, esperançosamente, Hayakawa mostra a emergência de valores humanizados em pessoas jovens. Por esse fato, “Plano 75” inspira o desejo de que, emergindo de um mundo que inventou a morte, e segue inventando novas formas de morrer, o futuro nos traga um mundo mais humano e mais amoroso. Pelo menos, um mundo melhor do que este que temos agora.


Ficha Técnica
“Plan 75” (2022) – Japão
Direção: Chie Hayakawa
Roteiro: Chie Hayakawa, Jason Gray
Edição: Anne Klotz
Fotografia: Hideho Hurata
Design de Produção: Setsuko Shiokawa
Trilha Sonora: Rémi Boubal
Elenco: Chieko Baishô, Hayato Isomura, Stefanie Arianne, Yumi Kawai,Taka Takao

 

Publicado Por

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *