Questão de tempo
Última atualização: 20/05/2024
Para que este texto não prejudique sua experiência cinematográfica, recomendo que você não o leia antes de assistir a Questão de tempo.
Uma longa tradição
O gênero que, na falta de expressão melhor, podemos chamar comédia romântica britânica consolidou-se com Quatro casamentos e um funeral (1994), roteirizado pelo neozelandês Richard Curtis. Mas outros filmes britânicos que não levam a assinatura de Curtis na direção e/ou no roteiro podem atender mais ou menos prototipicamente pelo mesmo termo. São filmes como Um peixe chamado Wanda (1988), Os Commitments (1991), Ou tudo ou nada (1997), O barato de Grace (2000), Túmulo com vista (2002), Morte no funeral (2010). Essas obras trazem como marca registrada o refinadíssimo, cativante e levemente debochado humor das terras do Rei Charles.
Questão de Tempo (2013), que acaba de chegar ao catálogo da Netflix, se encaixa na instância central dessa categoria. Leva, ainda, a assinatura de Curtis, um dos expoentes do estilo inglês de fazer Cinema sofisticado e nem por isso menos popular.
Para os filmes que Curtis dirige e/ou roteiriza, preciso abrir um parágrafo em separado, porque são dele as obras mais conhecidas, algumas delas cultuadas como jovens clássicos. Além de roteirizar Quatro casamentos e um funeral, Curtis também escreveu os roteiros de Um lugar chamado Notting Hill (1999), os dois primeiros filmes da trilogia Bridget Jones (2001 e 2004) e Simplesmente amor (2003), este também dirigido por ele, assim como Questão de Tempo. Todos fazem sucesso no mundo inteiro.
Questão de tempo é de uma sabedoria singular
Questão de Tempo é garantia de 123 minutos de puro deleite. Seu roteiro é superior à grande maioria das outras obras. E algumas delas já são ótimas. Em termos de sofisticação temática, Questão de Tempo se iguala a Simplesmente amor. Traz à reflexão, disfarçada de humor leve e despretensioso, a complexidade das relações humanas e da vida. E isso é algo que muitos de nós adoramos testemunhar no Cinema.
Dessa forma, o fato de o protagonista Tim (Domhnall Gleesson), assim como os outros membros masculinos de sua família, ser capaz de viajar ao passado da própria história e depois retornar não ganha destaque em si. Porém, esse fato serve como alegoria sobre a possibilidade de, sob a ideia de voltar no tempo, aprendermos com erros e enganos. Serve também para refazermos não somente a vida, mas também nossa própria visão sobre ela e nós mesmos. E, da mesma forma como acontece na vida “real”, nem tudo pode ser re- ou desfeito. Escolhas duras às vezes precisam ser feitas, às vezes com consequências ruins, para que a vida possa seguir seu curso na direção da felicidade.
Assim, essa é a impressão superficial que temos acerca de Questão de Tempo. E é a que inicialmente conectamos ao privilégio de Tim e de seu pai (Bill Nighy) de se transportar ao passado. Essa ideia está presente também em outros filmes que tratam de temas semelhantes à viagem no tempo, como vidas passadas, loopings temporais e outros mitos do tipo. Portanto, Questão de Tempo não seria um filme especial se só tratasse disso. Também não seria especial por trazer aquele cálido torpor de prazer, aquele sorriso nos lábios que as comédias românticas britânicas são especialistas em provocar em nós.
O elenco impecável de Questão de tempo
Quanto a esse pormenor, o filme satisfaz completamente as expectativas. O adequadamente irlandês e ruivo Domhnall Gleesson entrega com natural perfeição a encomenda que seleciona mais uma vez o tipo que tem Hugh Grant como melhor modelo. É a típica figura que não atende a expectativas estéticas de atração sexual, mas mesmo assim tem aquele irresistível charme sonhador e desajeitado – e sotaque britânico, claro. A canadense Rachel McAdams, hoje atriz de trabalhos densos, em 2013 ainda era vista apenas em papéis fofos, encarnado a moça bonita mas fora do padrão bombshell – este lugar já está ocupado por uma Margot Robbie em início de carreira.
E, como cereja do bolo, ainda temos Bill Nighy, mostrando mais uma vez por que é quase onipresente nas comédias românticas britânicas. Encarnando o pai de Tim, ele está maravilhoso. Deliciosamente espontâneo, o personagem de Nighy flui pela narrativa como uma bússola. Guia os aprendizados do filho e ao mesmo tempo lhe serve de plataforma de lançamento para novos saberes.
Questão de tempo tem mais camadas do que seus equivalentes
Mas esses elementos todos, em conjunto extremamente cativantes, ainda não tornam Questão de Tempo um filme especial. Dois elementos do roteiro, por sinal bastante conectados entre si, contribuem para a singularidade do filme. Junto com Simplesmente amor, esses elementos o diferenciam tematicamente dos demais.
O primeiro elemento é a evolução do caráter do protagonista Tim, que inicia o filme estabelecendo para si um teto baixo ao cultivar expectativas esquemáticas de relacionamento com a vida.
A possibilidade de amadurecimento de Tim se apresenta com a prerrogativa de viajar no tempo. Ele, humanamente, ora sua capacidade em proveito próprio, ora a usa em benefício das pessoas de quem gosta. Às vezes, age impulsivamente, antes de ponderar que algumas de suas ações podem prejudicá-lo. Sua própria capacidade especial fica em questão em mais de uma ocasião. Por isso, ele não a vê como algo que o diferencia das outras pessoas, mas sim como mais um elemento a pesar em suas escolhas de vida.
Uma atuação à altura do desafio
A evolução do personagem se evidencia na atuação de Domhnall Gleesson. No início do filme, Gleesson se comporta e se apresenta corporalmente como um rapaz bobo e até meio infantil. Porém, já traz a semente do caráter generoso que mais tarde se instala como a tônica de sua personalidade. Esse amadurecimento é proporcionado não apenas pelas viagens no tempo. São também importantes as pessoas que vão entrando e saindo de sua história. Elas o levam a compreender que é preciso enfrentar o processo de negociação com a vida. Ao negociarmos, fatalmente sempre teremos de ceder um pouco ao mundo em função de ganhos realmente relevantes.
Ao fim do filme, Gleeson nos oferece um personagem completamente constituído. Transforma-se em um homem verdadeiramente adulto, com um rosto e um olhar serenos, visivelmente diferentes daquele que o personagem trazia nas cenas iniciais. Sua atuação nos fornece a certeza de que o comportamento errático e inseguro da juventude deram lugar, em definitivo, a uma pessoa consciente e empoderada de suas ações e sentimentos.
Essa evolução do personagem, apoiada na atuação de Gleeson, nos permite reconhecer o segundo motivo de Questão de tempo ser um filme especial. Este se baseia no último ensinamento do pai de Tim, que o filho leva adiante e transforma em algo ainda mais sofisticado e relevante do que as outras grandes lições que recebeu. Diz respeito à melhor forma de viver o cotidiano, que em princípio nada tem a nos oferecer como experiência estética. Mas, depois, pode ser transformado em um tempo de gentileza, alegria e fruição das coisas e de tudo o que elas têm a nos oferecer, e na maior parte do tempo não estamos dispostos a observar.
Como sobreviver à banalidade fascista e neoliberal
Esse segundo elemento que singulariza Questão de tempo é a ideia de uma vida vivida com a intensificação das experiências cotidianas para resgatá-las do trivial e da banalidade dos dias (termo que outro dia uma amiga usou para tratar de assunto análogo). Essa ideia é de uma contemporaneidade e de uma urgência incomparáveis. Ainda mais neste momento em que, em todo o mundo, poderes quase absolutos estão nas mãos de pessoas truculentas, preconceituosas, ignorantes, gananciosas e arrogantes na mesma medida.
De fato, o presente embrutecido está no radar cognitivo de muita gente inteligente. Consciente do perigo de esvaziamento e do embrutecimento das relações, a jornalista Eliane Brum, durante o segundo turno das eleições presidenciais de 2018, nos ofereceu um guia para enfrentarmos os tempos truculentos sem permitir que o fascismo, uma ameaça que não cessou com a derrota de seu representante brasileiro, possa dominar nossos corações. Brum desenrola a receita de como não se contaminar pela amargura e pela falta de sentido de uma vida aquém de uma dimensão estética de existência. Algo que o fascismo, de braço dado com o neoliberalismo, impõe.
Esse sentimento passa pelo cultivo da ampliação de nosso alcance perceptual e sensorial do mundo. Assim poderemos abarcar as outras pessoas e reconhecê-las como iguais a nós em sentimentos e necessidades. Na vida pública, essas ações de ampliação não são nada raras. Elas estão em observar quem espera na faixa de pedestres. Quem dá seta pedindo que outros carros cedam a vez; quem está atrás de nós com menos compras para pagar; quem está viajando em pé no ônibus; quem está com mais vontade de ir ao banheiro; quem está com fome e sede; quem não tem sequer um teto para se abrigar; quem sofre injustiça e preconceito; quem será exterminado num regime de ódio e exclusão.
A liberdade é dos outros
Então, de certa forma, é uma ousadia que Questão de Tempo seja um filme sobre viagens no tempo que ao fim mostra que não precisamos viajar a lugar algum para mudarmos a nós mesmos e, assim, mudarmos a sociedade, porque as viagens de nada adiantam se não produzirem em nós aprendizados.
Essa lição transforma o filme em uma história sobre a vida como exercício de liberdade. Assim também afirma o escritor estadunidense David Foster Wallace: é uma ideia de liberdade dos grilhões de uma estrutura de poder que destrói nosso desejo para que possamos produzir mais. A liberdade proporcionada pela capacidade de observar o mundo, ressignificar o dia-a-dia e permitir que nossa percepção ampliada desenhe caminhos de autoconhecimento e transformação pessoal e social que de outra forma jamais poderíamos alcançar.
Direção: Richard Curtis
Roteiro: Richard Curtis
Edição: Mark Day
Fotografia: John Guleserian
Design de Produção: John Paul Kelly
Trilha Sonora: Nick Laird-Clowes
Elenco: Domhnall Gleesson, Rachel McAdams,Bill Nighy, Margot Robbie
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