Quo Vadis, Aida?
Última atualização: 25/04/2021
Podemos dizer que, no Brasil, a palavra do ano até agora é genocídio. Nas esferas do poder, é impressionante como essa palavra mete medo naqueles a quem ela se refere. Por isso, pessoas são oficialmente advertidas pelas forças ora do poder apenas por pronunciá-la. Outras até recebem ameaças de processo legal. Dessa forma, Quo Vadis, Aida?, que em 2021 concorre como finalista ao Oscar de filme estrangeiro, usufrui do timing perfeito para a discussão sobre o conceito de genocídio no Brasil.
O trágico e violento episódio descrito no filme, o genocídio de Srebrenica, na Bósnia, em 1995, é polêmico não apenas por seus horrores, mas também pela recusa de muita gente em denominá-lo como genocídio. Nesse sentido, o que a diretora Jazmila Zbanic oferece em Quo Vadis, Aida? é um argumento que contribui fortemente para a denominação definitiva de genocídio para os eventos do filme. Diante disso, já adianto que não importa a perspectiva que Zbanic escolhesse assumir: é genocídio mesmo, tanto lá quanto aqui.
Evidentemente, ser uma descrição desse genocídio, a parte mais horrorosa de uma guerra que por si já é nojenta e brutal, já torna Quo Vadis, Aida? uma obra relevante. Especificamente, o que a coloca entre os finalistas ao Oscar de melhor filme, e com grande chances de sucesso, é o recorte preciso e cirúrgico desenhado em torno de Aida Selmajanic (Jasna Djuricic, esplêndida).
Quo Vadis, Aida? aproxima o massacre de uma cidade para uma dimensão pessoal e familiar
É precisa a escolha de Jazmila Zbanic de trazer para a dimensão individual, mais precisamente, a familiar, o sentimento dos movimentos que transformaram Srebrenica, de uma região neutra em meio à cruel guerra da Bósnia, para o palco de um dos maiores massacres humanos do século vinte. Em meio aos milhares de mortos, mutilados e estuprados sob as ordens de Ratko Mladic (Boris Izakovic), à época Chefe do Exército da República Sérvia, a família Selmajanic – Aida, seu marido Nihad (Izudin Bajrovic) e seus filhos Hamdija (Boris Ler) e Sejo (Dino Bajrovic), são o epicentro da narrativa.
Focalizar, sem desvios, aquilo que acontece com Aida, intérprete que atuou entre a Força da ONU presente em Srebrenica e os habitantes da cidade e sua família, aproxima o espectador do sentimento de desespero e perda não apenas deles, mas também de todas as pessoas atingidas pela sanha assassina de Mladic e seus comandados.
Em função disso, a câmera de Zbanic não se distrai com outros fatos que não os efeitos da crescente dramaticidade dos acontecimentos. Assim, eles se iniciam com o desrespeito do Exército Sérvio à condição de neutralidade de Srebrenica, e se agravam pela omissão da Força de Paz da ONU diante da invasão sérvia. Lançando mão de seus contatos dentro da equipe da ONU, Aida tenta todas as alternativas possíveis e impossíveis para proteger marido e filhos daquilo que ocorria na frente de todos: o sequestro dos habitantes de Srebrenica do sexo masculino.
Em Quo Vadis, Aida?, a História se impõe em seu valor de face
Porém, dentre as escolhas perfeitas de Zbanic para contar ao mundo sobre o terror que Mladic impôs sobre uma cidade inteira sem ninguém para contê-lo, encontra-se algo que, em minha opinião, está entre as maiores qualidades de um cineasta. Zbanic realmente aposta na força do impacto do material histórico e narrativo que tem em mãos.
Esse impacto diz respeito não apenas ao que aconteceu com os habitantes de Srebrenica, mas também ao recorte que Zbanic realizou: uma mulher lutando feito leoa para garantir a vida dos membros de sua família, mesmo que isso pudesse custar a sua própria. Sabemos que o cenário em torno inclui fatos que realmente aconteceram. Por isso, o sentimento é o de que mulheres como Aida não são apenas personagens. Assim, é possível às mulheres serem como ela; de fato, muitas são, e muitas neste momento de fato lutam de forma sobre-humana pela vida dos seus, em todo o mundo.
Faz parte da confiança de Zbanic em seu filme o tom semidocumental. Na medida do possível, foi um alívio assistir a um filme sem recursos empregados na intenção de manipular minhas emoções de alguma forma. Não há atuações exageradas – nem o genocida Mladic se comporta no filme como o monstro que é. Não há sequer trilha sonora melodramática nos momentos-chave. A razão para isso é que o horror crescente, do qual somos sabedores de suas causas e efeitos, é suficiente para nossa empatia absoluta diante do desespero de Aida.
O mais perfeito zoom de uma guerra que expandiu o conceito de crueldade
Os maiores genocídios da História ocorreram em territórios ocupados por pessoas não brancas. Dessa forma, nas Américas, a instalação do patriarcado capitalista incluiu o assassinato de milhões de pessoas. Na África, guerras entre etnias provocadas pela cartografia criminosa europeia mataram e ainda matam milhões, de bala, de doença e de fome.
Sendo assim, por que o genocídio de gente branca, embora não cristã, expandiu o conceito de crueldade? Provavelmente por isso. O filósofo Achille Mbembe propõe o conceito de “devir negro do mundo”. Segundo o autor, trata-se do padrão necropolítico de prática escravocrata e criminosa que os europeus perpetraram por séculos nas Américas, e que posteriormente aplicou-se a comunidades de pessoas não negras. Ou seja, a escravidão se tornou uma tecnologia. Portanto, havendo a necessidade de aplicar os métodos escravocratas sobre populações não negras, já se sabe o que fazer. Segundo Mbembe, em função do devir negro do mundo, a escravidão nas Américas foi o balão de ensaio para, por exemplo, a política genocida de Estado da Alemanha nazista.
Criado originalmente para populações não brancas e não europeias, o genocídio de Srebrenica expande o conceito de crueldade porque é um círculo a mais na expansão dos limites do que são, para os racistas e supremacistas, categorias superiores e inferiores de pessoas. Em outras palavras, é aquilo que Bertold Brecht denunciou, em forma de poema, o que Jazmila Zbanic fez em forma de Cinema:
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.
Direção: Jazmila Zbanic
Roteiro: Jazmila Zbanic
Edição: Jaroslaw Kaminski
Fotografia: Christine A. Maier
Design de Produção: Hannes Salat
Trilha Sonora: Antony Lazarkievicz
Elenco: Jazna Juricic, Izrudin Bajrovic, Boris Ler, Dino Bajrovic, Johan Heldenbergh, Raymond Thiry, Boris Izakovic
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