Salamandra

Ao assistir a Salamandra (de 2021, mas lançado em circuito comercial apenas agora), primeiro longa de Alex Carvalho, fiz imediatamente um cotejo entre o que vi na tela e Deserto feliz (2007), de Paulo Caldas. Ambos os filmes narram relações pessoais/culturais na cidade de Recife. Mas esse detalhe acaba sendo uma coincidência. O que os assemelha é que em ambos há encontros de ordem (afetivo-)sexual entre brasileiros e europeus recém-chegados ao nosso país. Mas há outra semelhança que, na observação dos filmes, se revela bastante significativa. Ambos são realizados por homens. E é claro que isso produz efeitos.

Relato brevemente a história de Deserto feliz para que faça mais sentido a leitura de Salamandra que realizo neste texto. No interior do Nordeste, Jéssica (Nash Naila) é abusada sexualmente pelo padrasto e não encontra apoio na mãe. Decide partir para o Recife, onde mora com outras moças e se torna garota de programa. Paulo Caldas se demora no cotidiano de Jéssica e as amigas na capital. Elas passam o dia ora ociosas, ora se preparando para trabalhar à noite.

salamandra chegada

As escolhas narrativas presentes em Deserto feliz retiram de Jéssica e de suas companheiras um agenciamento protagonista na definição de seu destino. Parece que, no horizonte cognitivo da moça, não há espaço ou condição para ela projetar o tempo futuro e imaginar uma vida diferente, planejada e construída durante o dia, que é o período em que ela não está trabalhando em casas noturnas. Em Recife, ela permanece imóvel, refém das próprias emoções e desejos românticos. O rapaz alemão que em algum momento aparece é, em seus sonhos, a pessoa que irá salvá-la daquele cotidiano sofrido e sem perspectivas.

De colonizadora a colonizada

Algo que também aproxima bastante Salamandra de Deserto feliz é essa descrição de uma personagem feminina refém das próprias emoções, que não se apropria nem concebe seu percurso de vida, não insere sua existência numa dimensão argumentativa, e espera que outros planejem sua vida por ela.

Contudo, no caso de Salamandra, ocorre uma inversão de papeis. O europeu agora está encarnado numa figura feminina, a da francesa Catherine (a experiente Marina Foïs). Ela chega ao Brasil para em princípio visitar a irmã rica, mas também para superar o luto após a morte do pai. O elemento brasileiro é Gilberto, ou Gil (Maicon Rodrigues, impressionante).

Gilberto

Gil é um jovem homem preto que toma a iniciativa de se aproximar de Catherine na praia. Eles logo após se envolvem afetivo-sexualmente, e logo também Catherine se permite arrastar para uma tsunami de emoções. Assume para si os planos de vida de Gil, e igualmente sofre as consequências daquilo que ambos fazem juntos. É como se seu passado não tivesse produzido nenhum aprendizado, ou como se seus sentimentos por Gil a tivessem deixado num estado de torpor, numa incapacidade de pensar nos efeitos das próprias ações.

Nesse sentido, a ideia de Catherine como a colonizadora que domina a vida de algum habitante dos trópicos é recusada no filme. Pelo contrário: ela é que se torna a pessoa colonizada pelo sexo e pelos projetos de um jovem brasileiro ainda carregado dos rancores de uma infância oprimida na ultra-estratificada Recife.

Histórias contadas por homens reduzindo as mulheres a um mesmo estereótipo

Catherine é uma personagem que se encaixa bem no feliz título do filme. Que, aliás, é o mesmo que nomeia o livro-fonte de Jean-Christophe Rufin. A salamandra-de-fogo é um animal venenoso que vive em diversas regiões da Europa. A menção a fogo aqui não é aleatória. A também europeia Catherine de fato se queima até as cinzas no fogo da paixão por Gil, mesmo mal falando o português e estabelecendo com ele um diálogo em que só o básico é dito. Se comunicam pelas emoções.

Esse cenário me impede de observar Salamandra pelo prisma do colonialismo, muito embora a tentação de fazer isso se fortaleça diante da (longe de ser inédita) situação de encontro amoroso entre personagens do sul global e do norte centro da estrutura capitalista mundial. O que afasta, a meu ver, a identificação desse tipo de relacionamento em Salamandra é o fato de que esse encontro é narrado de um ponto de vista masculino.

Salamandra encontro

Sabemos que Alex Carvalho passou boa parte de sua vida fora do Brasil, em países da África e da Europa. Com efeito, ele relata que isso despertou e alimentou seu interesse pelo multiculturalismo. Porém, no caso de Salamandra, os elementos multiculturais acabam sendo apagados pelo fato de que se trata de uma história masculinamente enquadrada. E aí, a imagem de Catherine como aquela que carece de uma racionalidade agentiva, argumentativa e consequente, acabou prevalecendo.

Uma grande ilusão

Vale salientar em que medida, em Salamandra, as questões de raça e de classe acabam ficando em segundo plano relativamente às de gênero. A diferença racial e social entre Catherine e Gil não é uma questão que estrutura o filme. Ele ser homem é que é o fato que o define como o personagem protagonista da narrativa, ou seja, aquele que desencadeia por vontade e ação os acontecimentos que testemunhamos em Salamandra. A Catherine, resta apenas a tarefa de segui-lo, confiar nele, estar junto com ele no prazer e na decepção, e arcar com as consequências daquilo que executaram juntos.

Ou seja: o fato de ser uma história apresentada da perspectiva de um narrador masculino, completamente encaixada nos estereótipos de gênero tradicionais, torna Salamandra um filme neutro relativamente ao lugar, ao tempo e às outras características dos personagens que enquadra. Não faz diferença que Gil seja mais jovem que Catherine, que seja pobre e preto, e que Catherine tenha vindo da Europa e poderia experimentar algum choque cultural com o nordeste praiano. Tudo isso está longe de constituir o filme.

planos

Salamandra, destituído de tudo o mais que poderia transformá-lo numa história singular, acaba sendo mais uma história de uma mulher solitária que conhece um homem, se apaixona por ele e perde o senso. Exatamente como muitos homens pensam que somos quando amamos. Resta perguntar quando é que eles começarão a perceber que, assim como o alemão encantado dos sonhos de Jéssica em Deserto feliz, essa mulher também é uma grande ilusão.


Ficha Técnica
Salamandra (2021) – Brasil, França, Alemanha, Bélgica
Direção: Alex Carvalho
Roteiro: Alex Carvalho, Thomas Bidegain
Edição: Joana Collier, Agnieszka Liggett
Fotografia: Josée Deshaies
Trilha Sonora: Jam da Silva
Elenco: Marina Foïs, Maicon Rodrigues, Anna Mouglalis, Bruno Garcia, Allan Souza Lima, Buda Lira, Suzy Lopes

 

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