Sol de inverno
Os modelos narrativos reiterados e consagrados pelo cinema estadunidense construíram nosso conceito de Cinema. De fato, nossa percepção do que é cinema e nossas expectativas são moldadas em grande medida por Hollywood. Por isso, é válido dizer que nossas emoções também são previstas e vividas na sala escura também a partir de hipóteses que construímos sobre as histórias que acompanhamos diante de nós na grande tela.
Tais hipóteses se sustentam sobre anos e mais anos assistindo e incorporando à nossa forma de pensar um mesmo padrão que esperamos que se repita. Chegamos a nos decepcionar quando ele não se repete. Podemos, até, sequer reconhecer quando ele não se repete. Portanto, não descarto a suposição de que podemos presumir que estamos vendo um filme quando na verdade o que está na tela é outro.
Foi por isso, quase certamente, que ensaiei uma crise de pânico em um dado momento da projeção de Sol de Inverno (2024), de Hiroshi Okuyama, durante a Mostra São Paulo de cinema de 2024. Mas isso não aconteceu somente porque gaguejo. Meu medo de que algo acontecesse a personagens que em menos de uma hora de projeção já me eram tão queridos tinha suas raízes no Cinema que cresci assistindo. Tanta felicidade, realização e alegria iriam cobram sua contraparte com alguma tragédia. Foi isso que Hollywood me ensinou a pensar.
O que gostamos de ver muitas vezes é o que corresponde às nossas expectativas
Escrever sobre filmes salientando em que medida eles se ajustam ou não às nossas expectativas narrativas requer uma explicitação dos conceitos que estamos tratando. Sol de inverno nos mostra que as mesmas histórias que caracterizam a Sessão da Tarde podem ser contadas de uma maneira afinada à contemporaneidade, e também se revestirem de uma linguagem capaz de constituir um cinema em camadas, complexo e adulto.
Porém, algumas pessoas podem discordar de mim e afirmar que Sol de Inverno não poderia aparecer em nenhuma Sessão da Tarde. Podemos considerá-lo um filme coming-of-age, e muita gente deve ter saído do cinema acreditando isso. Mas é também um filme de temática LGBTQIA+. Para constatarmos isso, devemos observar uma mudança de eixo que ocorre ao longo do filme. Isso não enfraquece a experiência de um de seus jovens personagens. Pelo contrário: reforça sua ideia de tomada de consciência das contradições do mundo.
Sol de Inverno nem sempre satisfaz às nossas hipóteses
Em Psicologia Cognitiva, estudamos um fenômeno chamado construção de hipóteses sobre o que lemos e vemos no mundo. Nesse sentido, observamos as coisas, no caso que nos interessa aqui – um enredo se desenvolvendo -, e já buscamos automaticamente prever os próximos eventos. Fazemos isso por já trazermos em nossa memória modelos de narrativa aprendidos com nossas experiências de vida.
Sol de Inverno começa com ênfase sobre o adolescente Takuya (Keitatsu Koshiyama) e suas tentativas de se integrar aos esportes de equipe de sua escola, mas sem sucesso. A gagueira (herdada de seu pai) também não lhe permite avançar muito nas atividades intelectuais. Hiroshi Okuyama, inteligentemente, não abre espaço no filme para bullyings dos colegas. Estes se limitam a achar engraçada a iniciativa de Takuya de arriscar alguns passos artísticos na pista de gelo após observar a técnica da também adolescente Sakura.
A centralidade da presença de Takuya na tela, somada ao encanto delicado com que o jovem personagem enfrenta seus problemas, nos faz construir a hipótese da narrativa coming-of-age focada em seu fortalecimento como pessoa a partir da descoberta de sua potência na patinação artística. Fazemos isso porque é assim que aprendemos vendo a Sessão da Tarde. Mas, com seus filmes, não nos habituamos a imaginar que talvez nossas hipóteses não correspondam às escolhas do diretor.
Imaginamos também, a partir dos mesmos modelos, que a questão afetiva do filme envolverá Takuya e Sakura. Mas isso não passa de engano, porque a história é de fato sobre outra pessoa. Me pergunto se todos que assistiram e assistirão a esse delicado filme constatarão a mesma coisa.
Vidas também são destruídas sem nenhum alarde
Em comum a Takuya e Sakura está Isashi Arakawa (Sôsuke Ikematsu), ex-atleta instrutor de patinação artística na pequena ilha onde moram. Arakawa logo nota o empenho de Takuya e se dispõe a treiná-lo. Para isso, agrega Sakura a fim de torná-los uma dupla, e assim de desenvolve o contraste entre as personalidades dos dois jovens. Ao mesmo tempo, Arakawa vê reacender seu entusiasmo pela patinação artística, e esse fato o aproxima afetivamente de Takuya.
Dessa maneira, abre-se espaço para o que acredito ser o eixo temático de Sol de inverno. O eixo é a vida de Arakawa, que tenta reencontrar caminhos pessoais após o fim da carreira esportiva. Esse reencontro inclui o relacionamento com Igarashi (Ryûya Wakaba), e esses dois campos, na vida de uma pessoa LGBTQIA+ numa sociedade homofóbica como a japonesa (e todas, não é…), são tão frágeis quanto o gelo que derreterá ao primeiro sol de primavera.
Podemos considerar que o que acontece em decorrência da entrada da energia e do prazer em patinar de Takuya na dinâmica de Arakawa e Sakura não é apenas um efeito do ciúme. Não se trata aqui de uma questão apenas pessoal, individual. Sol de inverno é também sobre como a vida de uma pessoa pode ser completamente destruída pelo preconceito. Este se alimenta principalmente das partes viciadas de nossa psiquê, mas encontra estruturas históricas fossilizadas que consideram criminosas determinadas formas de afeto, principalmente as que não se encaixam nos padrões do patriarcado.
É bom ter crises de vez em quando
Ficha Técnica
Direção: Hiroshi Okuyama
Roteiro: Hiroshi Okuyama
Edição: Tina Baz
Fotografia: Hiroshi Okuyama
Design de Produção: Norifumi Ataka
Trilha Sonora: Ryosei Sato
Elenco: Keitatsu Koshiyama, Kiara Takanashi, Sôsuke Ikematsu, Ryûya Wakaba