Tenet
Última atualização: 20/12/2020
“Nossa, mas só está falando de Tenet agora? O filme já até saiu do cinema!” Este veículo não é negacionista da pandemia e não vai frequentar ambientes fechados até que sua equipe seja devidamente vacinada. Compramos o filme no Google Play, vimos de casa e estamos falando dele agora. Desencana.
Vamos falar de Cinema, então?
Em defesa de Christopher Nolan
Ao contrário do que muita gente diz, considero Christopher Nolan um dos melhores – talvez o melhor – diretor do chamado “cinema pipoca” em atividade. Dunkirk, que apanhou de forma injusta da crítica, tem muito mais alma do que o esquecível 1917; Interestelar, em que pese o final problemático, tem algumas das melhores sequências “no espaço” em uma ficção científica deste século; e, por mais que Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge esteja abaixo dos seus antecessores, ninguém conseguiu até hoje construir um Homem-Morcego tão interessante no Cinema.
Creio que Christopher Nolan sofra do mesmo mal que atinge O Poderoso Chefão 3: um sucesso de público escolhido a dedo pela crítica para apanhar. Assim, quem o critica soa mais inteligente do que de fato é. Não generalizo, mas já li muita crítica negativa sobre obras de Nolan que não passava de rancor mal disfarçado.
Em Tenet, Nolan perde a mão
Minha quase boa vontade com Nolan não é sinônimo de passe livre. Eu seria igualmente cínico de negasse alguns dos problemas óbvios de seu novo filme, Tenet. Vou falar de três, comparando com filmes do próprio Nolan onde estes mesmos elementos foram trabalhados com maestria.
Os elementos são: construção de mundo, montagem e motivação de personagens.
A – confusa – construção de mundo em Tenet
A 11ª aula da MasterClass de Neil Gaiman é inteiramente dedicada à construção de mundos ficcionais. Duas lições são especialmente marcantes. Um bom mundo ficcional precisa de elementos reais, onde as regras arbitrárias podem se “diluir”. Ao mesmo tempo, é importante que o autor saiba de todas as regras. Mas não necessariamente seus personagens. Ou mesmo o público.
A melhor forma de introduzir o público a um mundo de ficção é permitir que seus personagens cometam erros ou tirem vantagem de suas regras. Você só sabe que estacionar na sombra é importante quando sai da praia e seu carro parece um forno de siderúrgica. O mesmo vale para filmes, livros etc.
Christopher Nolan tem um problema crônico quando tenta estabelecer a realidade do seu mundo fantástico em Tenet. O conceito científico que “explica” os objetos “invertidos”, que são capazes de retroceder no tempo, é muito especulativo. Ao contrário de Interestelar, que tem um apoio visual fantástico para dar base à sua imaginação, Tenet se apoia exclusivamente em objetos e pessoas andando “de ré”. O efeito é atrativo no começo, mas se esgota.
Ao mesmo tempo, toda surpresa que um mundo tão incomum poderia causar é destruída pelo excesso de diálogos expositivos. Antes de cada passo que os personagens precisam dar na trama, uma conversa praticamente descreve o que vai acontecer, o que está acontecendo e porque aconteceu. Para ser bem claro: extremamente chato.
Compare com A Origem: após as regras serem devidamente estabelecidas, os personagens entram no ato final e a ação apenas acontece. Nós entendemos o que vemos porque já foi dito, não é preciso que digam de novo.
Montagem e palíndromos
Palíndromo é uma palavra que se escreve da mesma forma nos dois sentidos: ovo, arara, mirim. Tenet, O conceito é uma clara metáfora sobre como o filme trata do tempo. Mas como isso se aplica à montagem?
Quando assistimos a uma história como essa de maneira linear (sempre no presente e em direção ao futuro), as grandes “surpresas” são os personagens perceberem que influenciaram os próprios destinos sem saber. E se é revigorante que Nolan coloque mais emoção e fé em seus filmes (como fez com o amor em Interestelar), esta emoção nunca se mistura ao resto de Tenet. É como um bolo de chocolate em que se esqueceu de colocar o chocolate na massa, então a pessoa serve o bolo com um pedaço de chocolate em cima.
Compare com Dunkirk ou Amnésia: nestes filmes, a montagem torna o tempo em um personagem ativo da história, influenciando a maneira como nós o compreendemos. Em Tenet, o tempo, mesmo sendo o tema principal do filme, é um acessório.
As motivações duvidosas em Tenet
Em minha análise sobre o começo perfeito de Era uma Vez no Oeste, aponto a capacidade de Sergio Leone em mostrar sem diálogos. Já apontei aqui o problema da exposição excessiva de Nolan, mas gostaria de trazer Margaret Atwood, autora de O Conto da Aia e Vulgo Grace, para a conversa.
Nas aulas 8 e 10 de sua MasterClass, Atwood fala da importância de desenvolver personagens que engajem a audiência. A oposição entre vilão e herói funciona melhor quando os dois representam visões opostas sobre um mesmo tema. O diálogo é uma ferramenta para revelar características e intenções dos personagens. Surpresas coerentes mantêm o público tenso. Lembra do duelo mental entre Batman e Coringa em O Cavaleiro das Trevas? É exatamente isso.
Pense agora nessas observações dentro da lógica de Tenet: como o Protagonista (John David Washington) mostra quem é quando confrontado por Sator (Kenneth Branagh)? O que ele vê em Kat (Elizabeth Debicki) para ajudá-la? Como os desafios do filme mudam as suas crenças pessoais?
Essas perguntas nunca são respondidas. Os personagens cumprem missões, enfrentam o mal e se relacionam sem evolução. A última narração do filme, sobre bombas que quase explodem, tenta justificar essa estagnação, em certa medida.
Mas, simplesmente, não é o bastante. Tenet é um fracasso de Christopher Nolan por, de forma paradoxal, ser Nolan demais.
Direção: Christopher Nolan
Roteiro: Christopher Nolan
Edição: Jennifer Lame
Fotografia: Hoyte Van Hoytema
Design de Produção: Nathan Crowley
Trilha Sonora: Ludwig Göransson
Elenco: John David Washington, Robert Pattinson, Elizabeth Debicki, Kenneth Branagh & Michael Caine
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