Thelma e Louise
Última atualização: 06/06/2021
Este texto contém spoilers sobre o enredo de Thelma e Louise (1991), de Ridley Scott.
À parte a espetacular sequência final cuja imagem se eternizou e é destaque deste texto, Thelma e Louise, que em 2021 completa 30 anos, traz alguns pequenos sinais de que é, de fato, um filme revolucionário. Duas cenas do filme, ambas já em seu quarto final, poderiam compor hoje um ensaio sobre o feminismo no século 21.
A primeira cena mostra um carro de polícia parado no meio do deserto, com um policial preso em seu porta-malas. Um ciclista negro passa fumando seu baseado e percebe quem está preso no carro. Porém, em vez de libertar o policial, o ciclista tira uma tragada de seu baseado, sopra a fumaça num furo feito por alguma bala de revólver e vai embora, deixando o policial no mesmo lugar onde o encontrou.
A segunda cena mostra as protagonistas, interpretadas por Geena Davis (Thelma) e Susan Sarandon (Louise), fingindo aceitar o assédio de um motorista de caminhão. Diante dele, elas expressam o horror que as mulheres têm das cantadas ofensivas de muitos homens, que acreditam que elas gostam disso. Os argumentos usados por elas já foram revistos pelas teorias feministas. Seja como for, era o que se tinha à época do filme. O interessante é a reação do motorista: ele se comporta de forma tal que nos dá a certeza de que não faz a menor ideia do que elas estão falando. E, evidentemente, por isso, não compreende por que elas explodem seu caminhão.
Thelma e Louise e interseccionalidade
Essas duas cenas significam muito para a certeza de que Thelma e Louise permanece fresco e representativo da temática que pretendeu abarcar. Igualmente, elas são também uma evidência de como a Arte se antecipa à Filosofia e à Ciência no sentimento de necessidade de reflexões e mudanças importantes para a sociedade.
Não que em 1991 já não se falasse de feminismo, e já não houvesse tratados importantes, alguns já clássicos, sobre o assunto. Mas as duas cenas que descrevi tratam de conceitos e percepções que apenas no século 21 se incorporaram ao diálogo cotidiano sobre gênero. Por exemplo, a cena do rapaz negro ignorando o pedido de socorro do policial remete à ideia de interseccionalidade, conceito proposto por Kimberlé Creshaw em 1991 – mesmo ano do filme, a propósito.
Crenshaw realizou pesquisas sobre a discriminação sofrida por mulheres negras pertencentes a classes sociais menos favorecidas nos Estados Unidos. A conclusão da autora, que postula a necessidade de examinar aspectos comuns entre discriminação e gênero e raça, hoje é ponto comum entre muitas vertentes em Ciências Sociais e Filosofia.
Em Thelma e Louise, o desprezo do rapaz negro pelo policial demonstra com precisão que o mundo masculino que oprime a dupla de protagonistas e as impele a ações extremas é, igualmente, um mundo masculino e branco que oprime quem não nasceu pertencendo às suas fileiras raciais e de gênero.
As coisas só existem quando as reconhecemos como conceitos
Por sua vez, a cena do caminhoneiro sem noção provoca também a reflexão sobre a necessária educação para o feminismo, que ajude as pessoas a construírem conceitualmente uma percepção precisa sobre violência de gênero. Sobre isso, vale a pena assistir à entrevista dada pela Professora de Filosofia da Unicamp Margareth Rago. A Professora Rago explica que, muito embora a violência e o assédio contra as mulheres sempre tenham existido, a compreensão conceitual sobre essas ações violentas, ou seja, sua desnaturalização, foi sendo construída aos poucos, e mais recentemente.
Para isso, tem sido fundamental a contribuição das Ciências Sociais e da Filosofia para delimitar com precisão as características dessas ações. Isso é o que nos permite chamá-las de violência, e também, sobretudo, dar-lhes nomes precisos e definidores. Essa descrição e nomeação é um dado imprescindível para ajudar as pessoas a compreenderem a si mesmas e reconhecerem que o que está sendo feito com elas muitas vezes é uma ação de violência.
Por exemplo, observem-se as formas de discriminação apresentadas em Thelma e Louise, que ainda são discutidas em muitas rodas de conversa sobre feminismo e machismo. Estupro, violência doméstica, assédio sexual e moral, culpabilização da mulher pela violência que ela mesma sofre, descrédito pelo que uma mulher diz e pensa. Isso tudo, tragicamente, ainda faz parte efetiva do patriarcado como cognição e ação.
No entanto, a demanda das mulheres por respeito e igualdade já superou essas reivindicações e alcançou a conquista do desejo e da iniciativa de maiores espaços de trabalho, poder e voto, como Yasmine Evaristo mostrou em seu texto sobre o “Efeito Scully” aqui no Longa História.
No momento extremo, a vitória e a liberdade
Antecipar percepções conceituais que ainda estavam sendo engendradas no seio da academia não foi o único acerto da roteirista de Thelma e Louise, Callie Khouri. Além disso, junto com o diretor Ridley Scott, Khouri deixa patente mais uma das contradições da sociedade estadunidense. O sonho de liberdade, que é um dos pilares éticos dos Estados Unidos, é imaginado nas amplas paisagens que as protagonistas percorrem. Mas esses espaços infinitos acabam sendo apropriados pelos homens. E eles os usam para encurralar a dupla, como se as duas mulheres fossem animais acuados e armadilhados. De infinito mesmo, só resta a elas o abismo para onde eles as empurram.
No entanto, mesmo armadilhadas, Thelma e Louise saem vitoriosas ao fim do filme, por dois motivos. O primeiro é que apenas elas superam suas limitações de compreensão sobre si mesmas. Com isso, ampliam suas possibilidades de escolha de como viver. E fazem isso sem a obrigação de uma vida que seja voltada para a realização dos desejos masculinos, algo que é o grande alicerce do patriarcado.
O segundo é que essa liberdade as leva a uma ação extrema. Porém, paradoxalmente, é a concretização da maior liberdade que conquistaram: a de fazer o que quiserem com seu presente e seu futuro. Fazendo suas escolhas juntas, antecipam, aqui também, a vivência e a prática da sororidade, algo que o feminismo nos ensina a nós mulheres como sendo uma grande ruptura de uma vida imposta pelos padrões masculinos.
Apenas justiça
Às vezes o Oscar é justo: por seu roteiro profético e paradigmático, Callie Khouri recebeu o Oscar de 1992. Mas justiça igual teria acontecido se Susan Sarandon e Geena Davis tivessem recebido juntas um Oscar duplo de atriz. Porém, infelizmente, diferente da Arte que se propõe premiar, a Academia anda não aprendeu a vislumbrar o futuro. É uma pena, porque o afeto e a cumplicidade entre Thelma e Louise para sempre ficarão em nossos corações como parte do brilho absoluto desse clássico do Cinema.
Thelma e Louise está disponível no Amazon Prime Video.
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Callie Khouri
Edição: Thom Noble
Fotografia: Adrian Biddle
Design de Produção: Norris Spencer
Trilha Sonora: Hans Zimmer
Elenco: Susan Sarandon, Geena Davis, Harvey Keitel, Michael Madsen, Christopher McDonald, Brad Pitt
Uma curiosidade esse filme é que ele também inspirou uma canção que, infelizmente, retrata diariamente a realidade de muitas mulheres.
A cantora Tori Amos foi inspirada pela cena de tentativa de estrupo a falar sobre sua própria experiência na música ” Me and the gun”, uma canção incrível, sem instrumentos, só com a voz da cantora relatando o ataque que sofreu de um “fã “.