Um Blade Runner Sonha com Ovelhas Elétricas?

Este texto contém spoilers de Blade Runner. Como se não bastasse, também conto muita coisa sobre o livro Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?. É, às vezes é difícil manter segredos.

No meu último texto sobre adaptações, falei sobre as diferenças entre linguagens e como elas afetam o resultado final de uma história. Naquele texto, meu foco estava em analisar a transposição de uma linguagem para outra, isto é, as diferenças formais entre as mídias. Agora, quero falar sobre uma outra característica das adaptações, que se relaciona mais com o conteúdo. Na verdade, considero essa característica tão importante que acredito ser ela que torne adaptações possíveis. Lá vai: há mais de uma forma de se contar a mesma história.

Rick Deckard no filme Blade Runner

Parece óbvio, né? E talvez seja mesmo. Mas aposto que a frase jogada assim, solta, ao fim de um parágrafo, não tem todo o poder que deveria. Por isso quero dizer mais duas coisas: a primeira é que, se há mais de um jeito de contar a mesma história, é porque não há uma forma “certa” e outra “errada”. Há, sim, formas mais ou menos eficientes (mais uma vez, reporto-me ao meu último texto sobre o assunto), mas nenhuma está errada. O que existem, na verdade, são perspectivas. Ou, melhor dizendo, interpretações.

O que me traz ao meu segundo ponto. Quando oferecemos uma nova interpretação de uma história, estamos contando uma história nova? Ou é o mesmo conto, só rearranjado? Não consigo te responder isso agora. Mas talvez, e só talvez, ao final deste texto eu consiga. Para ajudar, vou me concentrar em um caso de adaptação bem especial. Um caso que, de um lado, tem ovelhas, sapos, corujas e bodes. Do outro, prédios, neon, propagandas e… Lágrimas na chuva.

Uma questão em comum

Blade Runner é um filme famoso por já ter sido exibido em várias versões. Como estou falando de adaptações e comparando as visões de dois autores sobre uma mesma história, vou usar como referência a versão do Diretor, Ridley Scott. Em relação ao livro, não tenho muita escolha: Blade Runner é uma adaptação de Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, livro publicado por Philip K. Dick em 1968.

Reprodução do cartaz do filme Blade Runner

As duas obras têm o mesmo fio condutor: a busca, por vida e pela vida. Falo por vida me referindo à vida enquanto organismo: um ser natural, que se oponha ao artifical. E falo pela vida me referindo ao sentido mais óbvio da palavra, e também mais difícil de se definir. É o tempo em que estamos… Conscientes? Pulsando? Respirando? Tenho certeza de que não consegui explicar direito, mas também estou certa de que, mesmo assim, você entendeu.

Embora as duas narrativas se centrem numa mesma busca, há uma pequena mudança que tem grandes repercussões. A modificação está em quem lidera essa busca. No livro, é Rick Deckard, o caçador de recompensas. No filme, Rick Deckard (Harrison Ford) é o protagonista, o Blade Runner que dá nome ao título. Mas não é ele que puxa o fio da narrativa. Quem faz isso é Roy Batty (Rutger Hauer).

Androides, androides e… Mais androides

Nas duas narrativas, Roy Batty é um androide do tipo Nexus-6. A principal diferença entre os dois personagens é que, no filme, “Batty” se escreve com dois t’s, e no livro é “Baty”, com um t só.

(Brincadeira, não é essa a diferença, só quis te dar um momento de descontração.)

A diferença é que, no livro, Roy Baty é um androide sem redenção. Ele tortura uma pequena aranha só para passar o tempo, importuna Isidore pelo mesmo motivo e termina o seu ciclo com um tiro de Rick Deckard.

Roy Batter no final do seu monólogo

O Batty do filme, por outro lado, tem um arco de redenção. Na verdade, em muitos momentos, a sua redenção é tanta que ele imita o Redentor, com R maiúsculo: Batty fura a própria mão com um prego, para mantê-la aberta por mais tempo. Ele tem tempo de ir até o seu criador, Eldon Tyrell (Joe Turkel), implorar por mais vida. E, ao final, não é Deckard que encerra o seu ciclo. É o tempo: Batty fecha a sua jornada quando atinge seu tempo de expiração. E ele tem consciência disso, de que todos os momentos que viveu se perderão no tempo, e se tornarão… Não, já falei uma vez, não vou repetir. Você sabe o que é.

O que eu quero dizer com tudo é isso é que, no filme, Batty é um androide com sina de humano. Ele tem consciência da própria mortalidade, se revolta contra ela e, ao final, perece. No livro, as coisas não são bem assim. Porque no livro androide é androide e humano é humano, o díficil é saber quem é cada coisa. Ou… Será que é assim mesmo?

Uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa

Se você leu Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, sabe que a pergunta do título é um tanto provocativa. Se não leu, não se preocupe; é a você mesmo que me dirijo, que não leu o livro, mas certamente está lendo o meu texto (a não ser que seja tudo um sonho meu). Porque, agora, vamos ver o que a gente consegue descobrir interpretando o título, e só ele.

Rick Deckard no filme Blade Runner

Primeiro, vamos olhar um pouco para a palavra “sonham”. Não se preocupe, vou ser bem direta, o texto já está longo e não quero que te dê sono. Sonhar pode se referir: 1) ao que acontece de noite, quando os androides dormem quentinhos com seus cobertores elétricos; 2) ao que acontece de dia, quando os androides estão pensando nos seus objetivos, naquilo que desejam e almejam.

Sobre a primeira possibilidade, há um trocadilho interessante que se perdeu nas traduções mais recentes. Inicialmente, o livro foi traduzido no Brasil como Androides Sonham com Carneiros Elétricos?. Isso aconteceu para manter o uso da expressão “contar carneirinhos”, truque para adormecer que nunca funciona. Em inglês, ele é chamado de “counting sheeps” ou “contar ovelhas”. Assim, o título faz uma piada com o fato de que androides, por serem elétricos, contariam ovelhas (ou carneirinhos) também elétricos. Preste atenção nessa informação, porque já já eu volto para ela.

Já a segunda possibilidade é entendida de uma forma mais fácil se a gente trocar a palavra. Pense: se o título fosse Androides Almejam Ovelhas Elétricas?, o que isso nos diria? E agora é a hora de abrir um outro tópico, só para responder essa pergunta.

Androides, Ovelhas (elétricas)

Androides são, por natureza, elétricos. Esta é uma palavra carregada de artificalidade, que nos faz pensar em robôs, máquinas e fios. Ovelhas, por outro lado, são uma forma orgânica de vida. Animais que nos fazem pensar em lã, grama, “beeeh”. No título, então, a palavra “elétricas” está deslocada: ela não se refere a androides, que têm a eletricidade por conceito. Elas se referem a ovelhas, que são orgânicas. Ou eram.

Reprodução do cartaz de Blade Runner

Porque, uma vez acrescida a palavra “elétricas” a ovelhas, elas deixam de ser orgânicas. Não pensamos mais em lã, grama e “beeeh”, mas em robôs, máquinas e fios. O que Philip K. Dick faz, com o título, é indicar que ele está escrevendo um livro em que Androides e Ovelhas são feitos do mesmo material: elétrico. E, eu não esqueci, abri esse tópico para responder uma pergunta: o que o título Androides Almejam Ovelhas Elétricas? nos diz? Se os androides, que são elétricos, estão desejando ovelhas, também elétricas…

Isso nos diz que, no título, o autor parte da suposição de que iguais desejam os seus iguais. Eu sei que já faz um tempo que eu disse isso, mas lembre-se: no livro, é Rick Deckard quem lidera a busca por vida. E uma informação muito importante, que está na primeira página do texto, é que Rick Deckard quer comprar uma ovelha real, para substituir a sua ovelha elétrica.

Finalmente, Rick Deckard

A jornada do Deckard de Philip K. Dick se centra na busca por um animal de verdade, orgânico. O livro cita ovelhas, corujas, bodes, avestruzes, gatos e até sapos. A sua busca por vida é bem literal: é a busca por um ser-vivo, cujo funcionamento não dependa de fios e tubos. Além de ser apresentada na primeira página, essa motivação é tão importante para ele que é o que o motiva a realizar o seu trabalho, caçar androides. E, em um dado momento, descobrimos que a habilidade de cuidar de um animal é uma das coisas que diferencia um humano de um androide.

Ou seja: quando Deckard procura um animal para criar, ele está procurando, também, algo que o assegure de que ele é de fato humano. A procura de um objetivo externo é, na verdade, uma procura por autoconhecimento. Porque quando ele procura um animal que seja um ser-vivo, orgânico, ele procura a certeza de ser ele também um ser-vivo, orgânico. Afinal, se ele for humano, ele não pode desejar ovelhas elétricas, mas só ovelhas, das que fazem “beeeh”. No final do livro, depois de uma jornada exaustiva, Deckard finalmente encontra um sapinho.

A imagem tem uma nave voando em direção a uma propaganda com o rosto de uma mulher

Um sapinho que é, mais uma vez, elétrico. Assim como o Roy Batter do filme, o Rick Deckard do livro também não consegue encontrar o que procura. Na primeira página, ele fala que quer comprar uma ovelha de verdade, para substituir a elétrica. Na penúltima, ele conclui que é só um policial bruto, nada além disso. Ou, talvez, só um… Androide.

Uma resolução em comum

O filme e o livro percorrem caminhos bem diferentes, mas desembocam no mesmo destino: em um mundo marcado pela artificalidade, é impossível achar vida. Eles têm, portanto, o mesmo ponto de partida, e a mesma conclusão. Seria, então, a mesma história, só que repetida? Finalmente respondo essa pergunta, para dizer que: na minha opinião, não. Porque o autor-escritor e o autor-diretor partem de interpretações diferentes, e por isso criam jornadas distintas. E se você não concorda com minha conclusão, se sinta à vontade para fornecer a sua, a caixinha de comentários está sempre aberta.

Por último, eu sei que a conclusão do livro é triste, e a do filme também. E aqui, pelo meu compromisso com a alegria, faço um adendo. Lembre que outro ponto em comum entre o livro e o filme é que os dois são obras de ficção, um reino que existe separado da realidade. Aqui, no reino do real, ainda conseguimos ouvir pássaros, achar sapos orgânicos, e saber que não somos androides. E, quando você estiver em dúvida sobre o que é ou não real, conheço uma citação que pode te ajudar: “Realidade é aquilo que, quando se deixa de acreditar em sua existência, não desaparece“.


Fichas Técnicas
blade runner o caçador de androides
Blade Runner (1982) – Estados Unidos
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Ridley Scott
Edição: Marsha Nakashima
Fotografia: Jordan Cronenweth
Design de Produção: Lawrence G. Paull
Trilha Sonora: Vangelis
Elenco: Harrison Ford, Rutger Hauer, Sean Young, Edward James Olmos, Joe Turkel


androides sonham com ovelhas eletricas phlip k dick
Do Androids Dream of Electric Sheep? – Estados Unidos
Título no Brasil:
Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?
Autor: Philip K. Dick
Tradução: Ronaldo Bressane
Gênero: Ficção Científica
Primeira publicação: 1968
Edição brasileira: Aleph
Número de páginas: 288
Idioma: Português
ISBN: 978-85-765-7440-8

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2 comentários em “Um Blade Runner Sonha com Ovelhas Elétricas?

  1. Marina, saudações.

    No parágrafo intitulado Uma Questão em Comum vc diz que ‘Blade Runner é um filme famoso por já ter sido exibido em várias versões’. Estou confuso. Em se tratando de filme o correto não seria ‘várias edições’?

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