Verissimo
Breves pitacos sobre Literatura
O espectador de Verissimo (2024), de Angelo Defanti, sairá do cinema bastante feliz se levar para o filme alguns conhecimentos de Literatura que (espero) aprendeu na escola. O primeiro deles é sobre a crônica. Trata-se de um gênero literário bastante ligado ao espaço jornalístico impresso, tendo mantido suas características formais básicas quando os jornais se expandiram para o meio digital.
Na prática, isso significa que, ao escrever para um jornal, o cronista precisa compor um texto que caiba em meia página, partilhando espaço com uma ilustração. Porém, diferentemente dos colunistas/jornalistas que discutem política, economia, história, costumes etc. num espaço de igual dimensão, o cronista assume uma tarefa típica e bastante vinculada a seu ofício: a de revelar a dimensão estética do cotidiano.
A importância da crônica para a formação do brasileiro leitor é inquestionável. Esse gênero apresenta todas as facilidades e vantagens para o uso escolar. Crônicas não são textos longos, portanto podem ser estudadas em apenas uma aula. E nunca são textos triviais, porque trazem elementos capazes de provocar no leitor sentimentos de humor, indignação, amor, empatia, encantamento e muitos mais.
Na minha vida escolar, os autores de crônicas foram fundamentais para que eu consolidasse meu desejo de me dedicar à escrita e à língua portuguesa. E uma crônica específica me afeta em especial. Não uma do Verissimo, mas de Fernando Sabino, outro cronista eterno. Chama-se “A última crônica“, e hoje seria cancelada pelos mais puristas, mas nos anos 1970 fez muita gente se emocionar de verdade.
Dois Verissimos gigantes, pai e filho
O segundo conhecimento é sobre o próprio Verissimo. Mais especificamente, o gaúcho Luiz Fernando Verissimo, que Angelo Defanti acompanhou em 2016 durante os quinze dias que antecederam seu aniversário de oitenta anos. Esse acompanhamento significou estar junto com seu personagem em muitas de suas atividades cotidianas. Ou seja: Verissimo é, com efeito, uma crônica visual sobre um cronista.
Mas sigamos, porque há mais a saber sobre este Verissimo em particular, porque há outro Verissimo famoso. No caso, seu pai Érico Verissimo, não um cronista, não um autor de textos curtos. São de autoria de Érico Verissimo as sagas épicas do Rio Grande do Sul. Em especial, cito a trilogia “O tempo e o vento”, escrita nas primeiras décadas do século vinte. Diferentemente do filho, Érico Verissimo dedicou-se aos longos textos: contos, romances, novelas. E, diferentemente do pai, Luiz Fernando Verissimo expandiu os horizontes semióticos de seu trabalho, fazendo sucesso e fama com o gênero charge, popularizando os personagens As cobras.
Os caminhos literários distintos de pai e filho provavelmente fizeram com que eles se descolassem completamente um do outro no imaginário cultural brasileiro. Entretanto, justiça seja feita: isso acontece não apenas pelos caminhos diferentes, mas também pelo gigantesco talento de ambos. Por isso, o pai Érico, assim como o filho Luiz Fernando, também tem um documentário para chamar de seu.
Todo silêncio é esfíngico e polissêmico
A escolha por realizar uma crônica imagética sobre um cronista do papel impôs a Defanti um enorme desafio. Não considerando, claro, o desafio que é fazer Cinema no Brasil. O desafio que menciono é colocado pela personalidade de Luiz Fernando Verissimo, que é fascinante no seu hermetismo, no seu silêncio nem um pouco incomodado em embaraçar o interlocutor. Mesmo assim, seus entrevistadores se empenham verdadeiramente em tirar alguma informação daquele senhorzinho sempre simpático e delicado, mas lacônico. Sorridente, mas nada colaborativo.
Porque, aos oitenta anos, o escritor consagrado, que nem sabe mais quantos livros já publicou, continua sendo uma esfinge, revelando-se apenas em sua escrita. Tudo bem, isso é uma escolha. Acho que eu também escolheria isso. Tudo que penso que acho interessante alguém saber eu transformo em letra escrita. Mas a fama exige estar visível, aparecer. E aí é que complica, porque o silêncio esfíngico de Verissimo provoca sua polissemia. Podemos ler esse silêncio como bem quisermos.
Talvez deve ser por isso que muitas pessoas inventam frases e textos que ele nunca escreveu. Aliás, frases e textos sempre numa escrita que fica a anos-luz de distância da elegância e riqueza semântica de seus próprios textos. É porque gente genial dá pra imitar, mas não dá pra repetir.
Nesse sentido, Defanti é generoso em mostrar que grandes mentes são também pessoas que se engajam em relações de afeto e doçura, que têm uma vida comum, problemas comuns. Isso nos aproxima delas, e também abre espaço para que possamos pensar que um dia também poderemos ser como elas.
Verissimo é crônica visual também polissêmica
Por isso, me mantive por algum tempo no recorte feito por Defanti. Os cenários domésticos da família do escritor escolhidos por ele invocam uma atmosfera de acolhimento – a porta da sala aberta, a vizinhança tranquila. A temperatura amena da primavera gaúcha transborda do filme. As crianças já estão na piscina, mas a família ainda veste paletozinhos e acende a lareira em alguma noite mais fresca.
Os cômodos da casa estão cheios de uma vida presente e renovada, com as crianças que o avô adora, as comidas, as três gerações sentadas à mesa. Mas também há uma vida por anos vivida, atravessando os objetos que, longe de se acumularem, se distribuem pela casa, mantidos por décadas. E, sobretudo, livros, muitos livros. Difícil quem não queira morar naquela casa, quem não queira ser um Verissimo.
Porém, Defanti também estende o cotidiano de seu personagem pelos outros espaços que ele eventualmente ocupa, sempre como convidado de honra. Assim, vemos entrevistas – muitas -, viagens para divulgar seu novo livro, encontros ao ar livre em sua vizinhança, homenagens grandes e singelas, homenagens a seu pai. Mas sempre está lá a esfinge polissêmica, nunca demonstrando tédio, mas também nunca entregando nada. E, por isso, abrindo possibilidades para tudo.
Numa primeira leitura, penso que essa vida familiar comum marca um grande contraste com o escritor sagaz que precisou explicar ao público que tinha construído uma ironia, e que não partilhava ideologicamente de nada do que escreveu em sua crônica sobre o Romanée-Conti com que o marqueteiro Duda Mendonça presenteou o ainda candidato Luiz Inácio nas eleições presidenciais de 2002.
O problema está em quem entrevista
Mas claro que eu fui construindo uma leitura para além do espaço doméstico, e envolvendo também a necessidade de Luiz Fernando Verissimo – sacrifício, provavelmente – de atender a veículos de imprensa e participar de eventos em que precisa falar. E não foi fácil.
Como eu afirmei acima, o silêncio é esfíngico e polissêmico. Porém, preciso somar a isso o fato de que a contingência de ter de responder sempre às mesmas perguntas também obriga a uma forma de silêncio. Isso é assim porque, diante das mesmas perguntas sempre, não temos outra alternativa além de dar as mesmas respostas sempre, o que é uma forma de não dizer nada.
Não sei se eventuais entrevistas diferentes das que fazem perguntas superficiais foram excluídas do material de Defanti, ou se elas não aconteceram mesmo. Tendo a achar que a segunda hipótese é a correta. Eu realmente gostaria de ouvir Luiz Fernando Verissimo situar sua arte numa dimensão política, como vemos ao longo de sua obra. Gostaria de um debate de ideias, algo no qual sua mente ativa e inspiradora mesmo aos oitenta anos é plenamente capaz de se engajar.
O que significa que eu não queria ouvir perguntas sobre como a pessoa se sente ao fazer oitenta anos. E mais de uma vez. Inclusive porque fazer oitenta anos é cada vez mais comum. Eu realmente não queria ver um grande escritor tratado apenas como um representante da terceira idade. Então nesse sentido eu não sei se seu silêncio se deve a uma falta do que dizer, ou a uma exaustão das mesmas perguntas, ou, numa terceira hipótese absolutamente plausível, ao fato de que tudo o que o escritor quer dizer já está publicado, nas livrarias e jornais.
“Lutar com palavras é a luta mais vã”
Portanto, é pertinente a percepção de um contexto que envolve um artista genial em meio a pessoas nada interessadas em discutir ideias, em explorar nuances de seu trabalho. Existe muito de etarismo nessa pouca disposição em se engajar com alguém de oitenta anos de uma maneira que seja realmente provocadora. E também um pouco de preconceito em achar que todo mundo que assiste TV espera apenas informações banais.
Com efeito, Defanti abre espaço para essa leitura ao propor, paralelamente à proximidade de Verissimo em casa com a família, na gentileza para com os fãs, um distanciamento revelado por seu silêncio, que pode também denotar a nenhuma vontade em conversar com alguém que também não tem nada a dizer. Em um determinado momento, esse distanciamento acaba sendo físico mesmo, de seu corpo que se levanta da cadeira e vai embora. Se eu estivesse ali naquele momento, até eu iria.
Mesmo assim, nosso escritor, um dos maiores, de obra vasta, premiada e literariamente relevante, segue sendo gentil e paciente com todos, e com isso proporciona momentos deliciosos, às vezes engraçados, no encontro com a família e com fãs. Ser uma pessoa acolhedora, mesmo com personalidade peculiar, faz de Luiz Fernando Verissimo um personagem interessante para um tempo agradável diante da tela.
E Angelo Defanti o torna ainda mais interessante ao deixar abertas as múltiplas portas que seu silêncio oferece à nossa curiosidade. É quase certo que, tal como Drummond afirma sobre as palavras, Defanti reconheça que cada pessoa
“Tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?”
Direção: Angelo Defanti
Elenco: Luiz Fernando Verissimo, Lúcia Verissimo, Clarissa Verissimo, Fernanda Verissimo, Mariana Verissimo, Pedro Verissimo