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Vidas em Fuga | Dossiê Sidney Lumet

Por Vincent Sesering¹
Última atualização: 31/05/2024

Vidas em Fuga (The Fugitive Kind, 1960)

Roteiro: Tennessee Williams, Meade Roberts

Elenco: Marlon Brando, Joanne Woodward, Anna Magnani

Vidas em fuga é fruto de um acaso desses que o cinema pode proporcionar meio que sem alarde. A reunião de gênios absolutos antes mesmo que suas genialidades ficassem solidificadas na cultura por vir. Uma peça de Tennessee Williams. Adaptada por Sidney Lumet. Estrelada por Marlon Brando. Dessas coisas que parecem feitas umas para as outras. A união de um dramaturgo conhecido por personagens ultraintensos, em cenários com um peso social; com um cineasta clássico e minimalista; e com um ator que é dos maiores, senão o maior proponente do tal do “método” (aquela história: Stanislavski, Stella Adler, Teatro novaiorquino).

Aqui, Brando é Valentine “Pele de cobra” Xavier, um andarilho que busca encontrar um rumo na vida e que termina em uma cidadezinha do Mississipi trabalhando como balconista de uma loja. Mas acaba envolvido com duas mulheres: Lady (Anna Magnani), a esposa do dono da loja, e a jovem Carol (Joanne Woodward), cuja presença caótica parece a de alguém que nunca pertence de verdade àquele lugar.

Teatral mas não “teatro filmado”, o filme nunca renega suas origens. O grupo pequeno de personagens com relações que se complexificam aos poucos. Os cenários que se repetem e se alternam. Os diálogos e a mise en scène como a base ferramental da forma. Em uma ação que se fundamenta pela posição dos atores em cena, tanto quanto pelo que eles dizem uns aos outros. Mas que Lumet transforma. Sensível a todas as partes que podem existir em volta da trama. 

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Três anos depois da sua primeira obra-prima – Doze homens e uma sentença, que era também inspirado na lógica hiperteatral de um especial para a TV apresentado ao vivo – Lumet não se repete aqui. Se lá ele filmava o excesso de personagens da sala de júri a partir de uma complexa decupagem que vai se modificando ao longo do filme, em um longa feito praticamente de closes e planos próximos; aqui ele quer lidar com o cenário diretamente. Com a luz obtusa que invade os lugares. Com as pessoas em relação ao que têm ao seu redor. Seja um objeto que elas manipulam, seja o lugar onde elas estão. 

É como uma rejeição do teatral e uma potencialização ao mesmo tempo. Fortalecendo elementos do palco como sets e atores. Enquanto cria um filme cujo drama é completamente dependente de elementos cinematográficos como os planos que nos aproximam muito de suas expressões; que criam relações de poder a partir de ângulos do cenário e que criam subtextos a partir do uso do som.

Val existe em relação a essas duas mulheres. Uma delas mais velha e outra praticamente uma menina, quase da sua idade. Uma que veste o preto, enlutada. Como uma sombra capturada por aquele ambiente. Outra, branco, como se para demonstrar uma pureza que não foi (tão) afetada pela violência que constrói aquele lugar. Porque, se Lady está presa, naquele casamento, naquela vida, naquela cidade, Carol está livre. Mas livre do quê? Livre para ir para onde? Ele próprio, que acaba envolvido, capturado por relações que mais são fruto de ceder às suas fraquezas do que da vontade de se envolver, é um personagem masculino que até hoje parece algo exótico nos cinemas, por mais que na vida real existam aos montes. 

Aquele tipo de homem sensível. Sensibilizado. Marcado por uma delicadeza de alguém que aprendeu os costumes violentos de como se expressar. Embora quando o faça pareça ir contra o próprio âmago. Coisa que lembra uma discussão de dois anos atrás sobre a masculinidade e sobre o que o machismo faz com homens. Mas que aqui é só um dos traços que compõem esse cara. 

A pele de cobra da metáfora e, literalmente, de sua jaqueta. De alguém que se modifica. Que deixa para trás seus pedaços do que já foi. Mas também a lógica de vestir a pele de um predador para fingir ser algo que não é.

Na cena mais forte dessa construção, o monólogo sobre o pássaro que não tem pernas e por isso passa a vida no céu, Brando é quase devorado pela proximidade do plano. Uma tomada longa que não o interrompe e não o abandona. Que é mais um sinal dessa união entre o que há de melhor na intensidade da sua atuação, na sensibilidade minimalista de Lumet e no texto de Williams.

Deixando-o também, além de entre as duas, em oposição à figura de Jeb (Victor Jory). O marido de Lady. Enquanto Val é sensível, ele é bruto. Enquanto Val se move com leveza pelos espaços, ele está preso àquela cama. Pesado. Prostrado. Isso tanto nos cômodos internos e movimentações dos locais quanto pensando na cidade em si. Um que estava de passagem e ficou, e outro que parece enraizado ali. Uma manifestação desse homem do Sul segregado, mas não só. Uma manifestação desse homem desse tempo. Tema caro em todas as obras de Tennessee Williams, cuja homossexualidade pesa muito na criação de personagens assim.

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Em tela e fora dela, isso é manifestado. O protagonista tem uma ligação quase umbilical com seu violão. Um traço artístico de se expressar. Uma forma de pôr em música o que as palavras não bastam. Enquanto o objeto de manifestação de Jeb é a bengala que ele afunda no assoalho escada acima. Que ele usa para chamar a mulher do outro cômodo. Batendo no chão. Ecoando pelo ambiente em uma percussão surda que parece o martelo de um juiz que sentencia todos eles a essa prisão.

Não por acaso, o mezanino da loja de tecidos é todo gradeado na parte de cima. Não por acaso, as treliças do jardim dos fundos que eles constroem parecem formar algo como uma cela. Embora também pareça um altar. Uma nave de uma capela que “casa” personagens que encontram a cura um na outra, e outra no um. Que, no final das contas, se torna outra coisa. Uma prisão que encerra o personagem, da mesma forma que aquela de onde ele sai na primeiríssima cena do filme. Sinal dessa elegância elíptica e poética da estrutura do filme. 

Vidas em Fuga é, no frigir dos ovos, nada mais que “mais um” passo da primeira fase da carreira de um diretor descrito como camaleônico. Que se adapta ao seu material mais que como um autor, como um artesão de habilidades quase sobrenaturais. Mas que se dermos a atenção devida demonstra também os traços de uma identidade muito distinta. 

Tematicamente, no quanto ele é apaixonado por esses personagens hipersensíveis e hiperintensos em situações com subtextos sociais muito fortes. Formalmente na materialização de um cinema que usa um ferramental clássico para abarcar essa modernidade e a ousadia dos temas.

Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.

¹Vincent Sesering é crítico de cinema e jornalista de Joinville, Santa Catarina. Escreve há mais de uma década mas vê filmes desde sempre. Integrante da facção criminosa de Shyamalan e filmbro conformado. Já escreveu em veículos tradicionais mas tem um site, página de instagram/canal do tiktok chamado Coquetel Kuleshov. Além de ser parte da equipe do podcast que discute filmes de Supercine Sábado sem legenda junto de Camila Henriques, Diego Quaglia e João  Bosco Soares. 

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