
Virgínia e Adelaide
“Virgínia e Adelaide” é uma co-produção de 2024 da Casa de Cinema de Porto Alegre e da Globoplay. Dirigida por Yasmin Thayná e Jorge Furtado, é uma bem-vinda obra brasileira sobre duas personagens históricas importantes para o desenvolvimento da Psicanálise como prática popularizada e campo de conhecimento em nosso país. Além disso, é um delicado exercício de interseção entre as macropolíticas brasileira e europeia e as formas como a História interfere de maneira penetrante na vida psíquica das pessoas.
A narrativa do encontro entre Adelaide Koch (Sophie Charlotte) e Virgínia Bicudo (Gabriela Correa) parece mesmo obra de um roteirista de ficção. Com efeito, o corte de “Virgínia e Adelaide” se faz quando as vidas dessas duas mulheres se encontram no lugar onde os efeitos das políticas públicas racistas resultam mais nefastos e destruidores.
Adelaide Koch, psicanalista judia em Berlim, sua cidade natal, foge em 1936 da perseguição nazista ao perceber que em breve sua família seria aniquilada pelas forças do Reich. A socióloga Virgínia Bicudo deseja prosseguir em seus estudos sobre saúde pública. Entretanto, encontra um muro de gelo nos impedimentos sociais que, se hoje ainda são terríveis para as mulheres pretas, nos anos trinta do século vinte elas ainda vistas como no tempo da escravidão.
Conhecimento e auto-conhecimento
Buscando Adelaide a fim de ser analisada por ela, Virgínia a princípio não reconhece que os processos sociais são constitutivos da nossa formação psíquica. Nada mais natural, já que Adelaide também é inicialmente refratária ao tratamento pela mesma falta de reconhecimento. Desse modo, o fato de que as questões pessoais de Virgínia estão estreitamente relacionadas ao racismo que ela e a família sofrem é uma descoberta que ambas farão juntas. Isso ocorre para cada uma a partir do lugar em que se coloca no filme.
Virgínia aprende mais sobre si mesma e também sobre a forma como seu pai lidava com o racismo que sofria. Aos poucos, vai desvelando as carapaças emocionais que construiu ao longo da vida. Resistiu ao racismo, mas se manteve, de certa maneira, no mesmo lugar infantil onde estava quando a discriminavam na escola. Nesse sentido, sua reação, como a de muitas pessoas pretas, foi a de se tornar mais competente do que os brancos. Fez isso para superar o vaticínio cognitivo que o racismo estrutural incute como senso comum sobre os descendentes dos escravizados.
Adelaide, por sua vez, também sofre racismo por ser judia no tempo de exceção que o nazismo impõe na Alemanha da década de trinta. Resistindo até não poder mais com sua família, nesse tempo Adelaide vai observando o panorama racial da Alemanha mudar completamente. Presencia os judeus serem destituídos de tudo o que representa a vida civil: trabalho, moradia, liberdade de ir e vir. Acaba por partir para proteger as filhas quando reconhece que a pressão evoluía para se tornar genocídio.
“Virgínia e Adelaide” mostra que não podemos deixar os opressores vencerem
“Virgínia e Adelaide” bem poderia ser uma peça de teatro, dado o cenário único em que se desenrola. Trata-se da casa de Adelaide em São Paulo, que se transforma de sala de estar para consultório. Assim, nele, Virgínia, inicialmente na poltrona e depois no divã, faz as descobertas que a libertam para o autorreconhecimento da própria potência, independente do que o mundo pensa e espera dela.
Esse cenário cede lugar eventualmente para a narração de Sophie Charlotte e Gabriela Correa, descrevendo os estados de coisas históricos que cercam as vidas das personagens. A maioria deles, evidentemente, servindo como contexto e justificativa para suas ações e iniciativas pessoais e profissionais. Ao longo do filme, as imagens de fundo vão mudando de um azul frio para um rosa delicado, este sustentando cromaticamente como a vida vai melhorando e os sonhos de ambas vão se realizando à medida que suas ações são bem-sucedidas, e elas se tornam mulheres igualmente importantes para o desenvolvimento da Psicanálise no Brasil.
“Virgínia e Adelaide” não levanta a bandeira de defender a escravidão nas Américas ou o holocausto judeu como o processo histórico mais criminoso que o ser humano já perpetrou. Certamente, essa questão é legítima, mas não está entre os interesses do filme. Independente do crime contra a humanidade que se sofreu, para as vidas das vítimas os sacrifícios e o sofrimento são os mesmos. Portanto, a busca por recuperar a humanidade para viver em plenitude é a escolha mais sábia que se pode fazer. É uma forma de impedir que os opressores vençam.
Ficha Técnica

Direção: Yasmin Thayná, Jorge Furtado
Roteiro: Jorge Furtado
Edição: Giba Assis Brasil, Jônatas Rubert
Fotografia: Lívia Pasqual
Trilha Sonora: Maurício Nader
Elenco: Sophie Charlotte, Gabriela Correa