O Carnaval 2021 é uma longa quarta de cinzas
Última atualização: 16/02/2021
Sábado de Carnaval, a alvorada raiou, o hino tocou. Os ecos nas paredes da selva de pedra reverberaram como uma marcha fúnebre. De casa não ouvi, mas vi o vídeo e me peguei, mais uma vez com o peito apertado.
Era madrugada, copiei o link e enviei aos meus amigos: “chora comigo”. Fui dormir pensando nos últimos seis anos e em como minha relação com o Carnaval mudou. Pela manhã, no grupo de amigos, Doug brincou “Angola Janga hoje, meio-dia, eu encontro com vocês no cine Brasil”. Esse ano não teve grupo de WhatsApp, planilha de blocos, combinados de quem encontra quem pra comprar as bebidas. Só silêncio engasgado.
Ainda na cama, comecei a me lembrar de um dia de trabalho em 2014. Senti novamente o quanto uma festa que passei anos desprezando e criticando me resgatou em meio a um processo de estresse e ansiedade. Lembrei da semana infernal em que estava e de um amigo passar na porta da loja e falar “sábado tem Praia, bora?!“. Ainda levou um ano para eu ficar conhecida entre meus amigos como “queimadora de largada”, mas observei com mais carinho e menos julgamentos o que vinha acontecendo na cidade.
O Carnaval em Belo Horizonte renasce
A capital mineira Belo Horizonte teve sua primeira festa de Carnaval antes mesmo da inauguração da cidade, em 1897. Desde então a história de BH é marcada por desfiles de escolas de samba, disputas de festas entre clubes, bairros e até mesmo jornais. Nascida em 1984, tenho memória dos bailes no Centro Social (CRAS Providência), bairro vizinho ao qual fui criada.
Minha mãe improvisava fantasias com papel crepom e cartolina, comprava confetes e me levava para a matinê. Infelizmente, fotografia era um luxo, logo não tenho os registros. Porém, lembro de achar o máximo pular carnaval. Ainda assim, este foi um breve momento em minha vida. Em algum ponto dos anos 1990 essa festa sumiu, passou a ser um luxo dos clubes e casas de show. No máximo a tradicional Banda Mole, subindo Bahia até a Savassi. Até a corte momesca e as escolas de samba ficaram pausadas das apresentações entre os anos de 1992 e 2003.
Nos anos 2000, as políticas públicas da cidade cerceavam o uso dos espaços públicos pelos cidadãos. Os argumentos eram pautados em morais pessoais e esbarravam em direitos coletivos. Encontros e eventos, ainda que tramitados seguindo as normas de organização, passaram a ser cancelados sem aviso prévio de maneira truculenta. Em 2009, como enfrentamento e desobediência às políticas públicas que não flexibilizavam, a cidade passa a ser tomada por encontros e ocupações da população.
Nosso verão ganhou praia em meio ao calor do baixo centro. A Praça da Estação e seu entorno viram ponto de encontro não apenas nos dias de carnaval, mas ao longo do ano. Os blocos ganham mais seguidores e se espalham por vários pontos da cidade. Os cortejos, antes adormecidos, renascem espalhando amores e cores pela grande BH.
(re) Encontros
De volta ao ano de 2015, o movimento que se formou em meu entorno começou uma semana antes, ainda nos tempos de balcão de loja. Ouvia um “sábado tem Banda Mole” e nos intervalos via nas ruas a movimentação de pessoas com sacolas. Tules, tiaras, brilhos. Eu, zero planejamento diante de uma vontade crescente.
Andava exausta e desestimulada. Peguei minha pilha de filmes ao fim do expediente de sábado e fui pra casa. Em um certo momento, pensei que queria reconhecer a minha cidade. Isso resultou em uma manhã ao som do afoxé, reaprendendo que há multidões que não nos esgotam, mas revitalizam. A alegria dessa manhã ficou ali, movendo em mim até dia 30 de dezembro do mesmo ano. Estava no Rio de Janeiro, caminhando pelas ruas próximas ao Paço Imperial, quando de uma das ruas um bloco se materializou. Contagiante ao ponto de repetir o sentimento de alguns meses antes.
Esse foi o ponto de ignição de tudo. O ano que começou dois dias depois carregava em si muitas mudanças. Alguns meses depois, comecei uma nova graduação e tive que lidar com o desemprego após anos trabalhando. A ansiedade e a depressão, ainda negadas, eram presentes. Precisei fazer uma pausa e olhar para mim, praticar o tal do autoconhecimento. Desta forma, nesse espaço em que cabem todas e todos, encontrei uma maneira de extravasar em alguns dias os pesos do cotidiano.
Desde então minha carne é de carnaval, meu coração é igual. Retomei o amor pelos encontros e desencontros, me permiti abdicar da ordem por alguns momentos.
No meu país BH, tem carnaval pra todo mundo
Com o crescimento do carnaval em Belo Horizonte o público, interno e externo, aumentou. As festas que retomaram a folia de maneira política passaram a comportar cada vez mais turistas, foliões que só querem se divertir, dentre mais e mais pessoas que não estão ligadas apenas por um pensamento semelhante.
A festa do povo se caracteriza cada vez mais por abarcar a diversidade de seres que somos. Tem bloco pago com abadá e camarote, tem bloco de rua que cresceu exponencialmente nessa década, tem blocos nas periferias para quem não tem condições de ir para o centro.
Montamos nossos cronogramas pensando em como se divertir dentro da particularidade de cada um. Sexta dançamos forró, sábado madrugamos na porta dos prostíbulos centrais, domingo acordamos cedo para apoiar as causas LGBTI+ e emendamos no bloco afro concentrado na Praça Sete.
Como maneira de reduzir o cansaço e apoiar as amigas que são mães solo tem bloco nerd de Star Wars. Terça, de forças retomadas, o que queremos é aproveitar tudo e é um corre-corre, um tromba-tromba: vai cedo pro centro, sobre Chateubriant, pega bloco descendo. Tromba (literalmente) com a amiga que não vê há meses e transforma o esbarrão em um abraço coletivo, cantando o que o trio reproduz. Pausa pro almoço e mais bloco porque o dia está acabando e a rotina entediante já aponta junto do pôr do sol.
Com a sorte da folga tirada pelas horas extras e a cara de pau da universitária que decide matar aula, a quarta de cinzas pode ora começar às 4h20min, com a concentração do Bloco Temperado, ora à tarde com um cortejo em volta do cemitério. Ambas as experiências serão deliciosas.
No primeiro, temos café da manhã, tai-chi no meio do trajeto, aplausos para os trabalhadores que passam nos ônibus e o fim em algum local da cidade que precisa de visibilidade em alguma luta relacionada ao meio ambiente. No segundo, o bloco caricato é bem recebido pelos moradores de um bairro tradicional, com direito a parada nos portões das casas onde estão os moradores mais antigos, entoando marchinhas que os transportam para sua juventude.
E isso nunca acaba, pois sábado e domingo são dias de curar a ressaca e diminuir a distância até o próximo carnaval. Eu curo essa saudade que começa a brotar no peito com meu improviso de Ziggy Stardust pra ficar “de Bowie”. E passado isso, recomeça a contagem regressiva de planejamentos de fantasias, reserva financeira e certeza de que o ano não acaba antes de conseguirmos colocar pra fora nossas aflições em alguns dias especiais.
Um fim de semana para refletir
Esse texto nasce da frustração de não ter o que comemorar, mesmo que me encontre diante de boas notícias. Amigos que passaram pelo “coronga” sem muitos danos, colegas da graduação celebrando a recuperação daqueles que chegaram à reta final e deram a volta por cima são pequenas alegrias, que servem de bálsamos para as perspectivas da demora desses tempos passarem.
A alvorada tocou, e foi tão forte que arrancou lágrimas involuntárias. Doeu pelas pessoas que vi partir, pelos amigos que não pude encontrar, pelos que se encontram com familiares doentes, por todos que não podem se isolar.
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Me levantei, enchi o rosto de glitter, acoplei minhas orelhas de gatinha e fiz meu carnaval. Instaurei o Bloco do almoço de domingo e nosso grito de guerra foi “passa glitter pra comer macarrão”. Foi bom, tive as companhias cotidianas do último ano, mãe e irmão-fraterno. Ouvimos Zeca Pagodinho, tomamos cerveja, proseamos, rimos. Revisitei imagens dos carnavais passados, agradeci.
De 2015 até agora, aprendi muito. E essa festa faz parte desse processo. Me encontro melhor na maior parte dos dias. Às vezes bate uma coisinha incômoda, mas faz parte dos altos e baixos da vida. Penso que sempre tenho a oportunidade de passar um pouco de brilho no cantinho do olho para tomar café ou ler os artigos para a faculdade.
Leio as notícias em busca de boas novas me sentindo o eu-lírico de Chico vendo, sabendo, sentindo, escutando às vezes sem poder falar. Renovo minhas forças durante as trocas com meus amigos e mantenho minhas fantasias limpas e arejadas pra quando o carnaval chegar.
A imagem de destaque nesse texto foi fotografada por mim, em 2016, durante o cortejo do Bloco Filhos de Tcha Tcha. Em uma pausa para tomar água tentei captar a alegria das pessoas. Em minha frente o querido Edelço Vicente, que partiu desse planeta há poucos anos, manifestava em si a magia do Carnaval. Esse desabafo é dedicado a ele e tantos outros que partiram ou que estão aqui, passando esses dias em casa na esperança de que as mudanças aconteçam. Acredito no slogan do bloco Então, Brilha!, que abre nossas festas: gente é pra brilhar!
Fontes:
O carnaval, a política e a reconquista da cidade
Carnaval de BH: a luta (e a festa) recomeçam!
Yasmine, parabéns pelo texto.
Realmente não é fácil enfrentar essa distopia que o país vive e não se angustiar. Ainda bem que as “pequenas alegrias” surgiram.
Que possamos atravessar Isso e o Carnaval retorne.
Muito obrigada, Junio.
Que atravessemos esse momento e possamos ainda ter pique para comemorar um futuro carnaval na companhia daqueles que amamos.
Abraços.