The Last of Us

The Last of Us (ou: a importância das histórias)

Última atualização: 14/03/2021

Este texto tem spoilers para a primeira parte de The Last of Us. A primeira parte. Não a segunda. Sim, a que saiu em 2013.

Tenho uma crença muito forte, muito profunda, no poder das histórias. Falo das histórias inventadas, que já foram narradas em cavernas, pergaminhos, teatros e, mais recentemente, sites de fanfics. Histórias podem nos transportar para fora do nosso corpo, e nos fazer ver a vida pelos olhos de outra pessoa. Pense só: é difícil destruir um boneco depois de assistir a Toy Story, ou sair batendo em todo mundo depois de jogar Undertale. Boas histórias têm um efeito persistente porque, mesmo depois que elas terminam, ainda podemos nos conectar com os sentimentos que elas despertaram.

E é aí que está o poder delas. Nesses sentimentos que perduram, e podem nos fazer mudar a forma de encarar o mundo. Para explicar melhor, vou pegar emprestada uma definição de Herbert Read, autor do livro A Educação pela Arte. Ele define empatia como “a energia que alguém coloca em uma obra de arte”. Duas coisas me fazem gostar dessa definição. A primeira é a forma de tratar uma obra de arte não como uma ilha, isolada e distante; mas como uma ponte, que conecta os sentimentos dos personagens aos do público. A segunda é não partir do pressuposto de que é a arte que nos ensina a ter empatia. Somos nós que investimos nossas próprias reservas. Empatia não é ensinada; empatia é despertada.

Formas de despertar

Herbert Read deixou os videogames de fora da sua lista de obras de arte, mas, considerando que o livro é de 1943, acho que dá para perdoar. Este texto, por outro lado, é de 2021, então se eu vou falar de histórias, eu vou falar delas nos videogames. E eu não vou falar de qualquer jogo, não. Vou falar de um jogo grande. Um jogo que fez as girafas voltarem à moda. Vou falar de… The Last of Us. Acertou quem leu o título.

Ellie e a girafa the last of us

Geralmente, os videogames despertam a empatia do jogador por meio dos seus personagens. E não subestime: bons personagens são difíceis de construir, especialmente nessa mídia virtual. Porque idealmente, para a imersão funcionar, você deve fazer com que o jogador se identifique com os sentimentos do personagem. O problema é que, ao contrário de um filme, em um jogo não estamos assistindo à história se desenrolar; estamos contribuindo para a construção da narrativa.

Assim, a “energia que alguém coloca” em um videogame é muito maior desde o início, porque um jogo exige uma participação ativa para que a história progrida. Isso aumenta o grau do desafio: se estou mais envolvida desde o início, é mais provável que eu projete a minha personalidade no jogo. E é aqui que fica complicado de verdade: embora o jogador sinta que tem controle, na verdade ele não tem.

Joel em The Last of Us

Porque todo jogo é feito de caminhos pré-programados, a diferença está só em quão bem eles se escondem. Embora o jogador sinta que está no controle, isso nunca acontece. Então, se o desenvolvimento de um personagem não é coerente, vai haver uma desconexão entre o que o jogador espera que aconteça e o que efetivamente acontece. Todos os caminhos vão ficar bem visíveis, e o jogador vai se sentir forçado a percorrê-los. A ilusão do controle desaperece, e a experiência se torna frustrante.

Mas há formas de equilibrar o controle do criador e a vontade do jogador, preservando a imersão. E não precisamos ir longe para encontrá-las.

O que é oculto

Um bom objetivo para se pensar em imersão é fazer o jogador esquecer que está sentado em um sofá, segurando um controle. Nos filmes, isso se chama suspensão da descrença, e é feito pela construção de uma história sólida, com personagens críveis. Nos videogames, a coisa é um pouquinho mais complicada porque, lembrem sempre disso, essa mídia exige um papel mais ativo. Assim, para que haja imersão, o ambiente tem que parecer real.

Parecer real é uma coisa que é mais fácil falar do que fazer. Por exemplo: se um jogo tem muitas placas que indicam aonde ir, o jogador vai ligar o piloto automático, e vai só seguir os caminhos, sem propósito. Por outro lado, se não há qualquer tipo de indicação, o jogador pode se perder, e eventualmente desistir.

Joel caminho

O que The Last of Us faz para resolver isso é fingir que não está dizendo aonde você deve ir. Isto é, esconder as placas. O que eu quero dizer é que o jogo não vai te forçar a percorrer uma trilha. Em vez disso, vai colocar um animal para você seguir, ou iluminar uma parte específica do cenário, ou até fazer Joel falar “é por aqui” em resposta a qualquer caminho que você escolha. Isso ilustra uma mecânica muito importante dos jogos, que é frequentemente subestimada: a habilidade de forçar o jogador por um caminho sem que ele saiba que está sendo forçado.

Não precisa haver uma seta no mapa aonde se deve ir; o cenário pode servir para destacar o que é importante. Ritmo é uma boa parte da imersão, e se ele for constantemente interrompido, a experiência geral sofre. Aliás, saber preservar o ritmo é outro dos pontos de destaque de The Last of Us. Nada explica isso melhor que a mecânica de renascimento.

O que é mostrado

Toda vez que o jogador morre, ele retorna de um ponto relativamente próximo àquele da derrota. É uma escolha arriscada, porque pode diminuir o impacto das mortes, resultando em um jogo muito fácil. A forma como The Last of Us equilibra isso é pela inclusão de cutscenes violentas para as mortes: é o choque de uma cena assustadora que mantém o jogador em um estado de tensão.

Joel lutando com um zumbi

Aliás, a violência é um elemento onipresente no jogo. Há sangue em todo lugar: nas paredes, no botão de play de um gravador, até no para-brisa do carro em que uma pessoa querida andava. Geralmente, o comportamento do jogador reflete o de Joel mas, no caso da violência, é Ellie que surge como referência. No início, ela frequentemente chama atenção para a pilha de corpos no chão, e fica muito abalada quando tem que matar alguém. No final, ela está dilacerando um homem com uma faca, sem conseguir se conter.

A trajetória de Ellie reflete a de quem joga: ao final do jogo, o jogador também se acostuma com a violência. Se acostuma com os controles, a mecânica, e até os inimigos. Isso diminui o desafio da história, porque já se sabe o que esperar. O medo diminui, e dá lugar a um outro sentimento, um pouco mais complicado; muito mais duradouro.

O que lembramos

The Last of Us é um jogo sobre o luto. Todos os personagens são marcados por perdas. Quando os vemos, vemos também todo mundo que eles perderam. Sarah está no relógio de Joel. Riley está na cicatriz de Ellie. Até a jogabilidade nos força a lembrar do que deixamos para trás: a mecânica de se esconder e atacar que usamos para derrotar o líder de uma seita canibal é idêntica a que usamos para brincar com uma paquerinha no Shopping.

Joel e Ellie na chuva

O que impede o jogo de ser deprimente é que, mesmo com Ellie tão atingida pelo luto, ela serve como uma lembrança de dias melhores, dias que ela nem viu. Ellie é uma adolescente crescendo em um mundo horrível, mas ela ainda é alguém crescendo. Encontrando alegria nas coisas simples, como aprender a assoviar. Em um mundo que perdeu tanta coisa, é bom estar perto de alguém que ainda consegue descobrir novidades. Uma coisa é certa: quando olhamos para Ellie, a última coisa que vemos é… um monte de 1s e 0s.

O que esquecemos

Mas é isso que ela é. Ellie, Joel e todos os outros são tão reais quanto o cachimbo de Magritte. O sucesso do jogo está em nos fazer esquecer disso. Quando o jogador luta pela vida de Ellie, não está lutando para que uma personagem continue sendo renderizada, ou para que uma missão chegue ao fim. Está lutando pela garota que coleciona livros de piadas, que gosta de cavalos, macacos e girafas, e que enche sua mochila de memórias.

Ellie

Nos fazer amar Ellie é o triunfo de The Last of Us. Na verdade, nos fazer amar é o triunfo de qualquer história (isso é tão brega quanto é verdade). The Last of Us faz o jogador se importar com Ellie, que é só uma coleção de 1s e 0s. E, quando colocamos energia em uma obra de arte, acordamos algo dentro de nós. Um senso de humanidade, que poderia estar adormecido há muito tempo. Um sentimento de empatia, que persistirá mesmo depois do fim da história. Não subestime esse poder. Histórias transformam ideias em vidas.


Ficha Técnica
The Last of Us (2013) – Estados Unidos
Criador: Neil Druckmann
Desenvolvimento: Naughty Dog
Trilha Sonora: Gustavo Santaolalla
Console: Playstation 3
Lançamento definitivo no Brasil: 2013
Jogadores: 1
Gênero: Terror, Ação, Drama
Classificação: Maiores de 16 anos

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3 comentários em “The Last of Us (ou: a importância das histórias)

  1. Texto fantástico, do título (com referência a um certo homem pássaro?) à estrutura que você adotou, perfeito. Nunca passei dos primeiros minutos do jogo por não fazer meu estilo, e o conheço mais pelas referências que a cultura pop fez conhecidas, mas tive bastante vontade de jogar depois de ler.
    Parabéns.

    1. João, a Marina é ótima mesmo. Obrigado pelo elogio! Se quiser, dá uma conferida nos outros posts dela aqui na seção de games 😉

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