Soul (ou: em busca de um propósito)
Última atualização: 23/04/2021
Tudo que escrevo vem de uma pergunta. E não é que eu escreva para encontrar respostas. É que o que me motiva é sempre uma dúvida, um pontinho vazio que eu gostaria de preencher. Neste texto, em especial, a pergunta vai ser explícita: qual é o seu sonho? Poxa. Ficou um pouco difícil de responder. Desculpe. Talvez eu deva começar com algo mais fácil… Qual é o seu propósito? Vixe. Piorei tudo, agora que não dá para responder mesmo. Espere. Já sei. Qual é a sua paixão?
Se você, assim como eu, se perdeu nesse labirinto de perguntas difíceis, quiçá irrespondíveis, se acalme. Eu criei o problema, mas posso te dar a solução. Não as respostas, aí é pedir demais desta duvidosa-autora (e não autora-duvidosa, Machado de Assis já explicou). O ponto é que tem uma boa forma de pensar essas questões, e ela está em um filme da Disney/Pixar. Acertou quem leu o título: o filme é Soul.
O ponto de partida
Soul começa no ponto em que a maior parte dos filmes da Disney termina: a realização de um sonho. Pense, por exemplo, em Pinóquio, que finalmente vira um menino de verdade (é, dá tudo certo e ele sai da baleia, perdão pelo spoiler) e então… Pronto. O filme acaba. Não há nem um Pinóquio 2 – O Inimigo Agora é Outro para falar da puberdade. Como muitos filmes derivados de fábulas, Pinóquio termina em um lugar inalcançável: o do “felizes para sempre”.
Inalcançável porque, primeiro, não podemos ser felizes, estado de espírito que exige, por definição, um outro lado. A Disney/Pixar tem um ótimo filme que ilustra bem essa duplicidade: Divertida Mente. É por precisar da tristeza que não somos felizes, só estamos (espero eu que com alguma frequência). E, segundo, não somos para sempre. A isso, sinto que não preciso oferecer maiores explicações.
Aliás, se esse último parágrafo te pareceu triste ou desesperançoso, não se preocupe. Minha intenção não é te tirar do estar feliz. Se quiser, pare de ler e assista a Soul: tenho certeza de que o filme vai te mostrar que o “felizes para sempre” não faz lá tanta falta. Se já assistiu, ou se gosta da minha companhia e deseja continuar, então vamos nessa. Prometo que vou me esforçar para te animar daqui para frente.
O retorno
No início, eu te perguntei qual era o seu sonho, o seu propósito, a sua paixão. Nessa ordem. Não se preocupe, não vou voltar àquelas perguntas incômodas. Só estou relembrando o assunto porque, em Soul, é esse o arco que Joe Gardner (Jamie Foxx) percorre.
Ele trabalha como um professor de música, mas o seu sonho é tocar em clubes de Jazz. Quando Joe finalmente consegue uma vaga para tocar na banda de Dorothea Williams (Angela Bassett), mestre do Jazz, ele é interrompido porque cai em um bueiro e… passa para o Além. Lá, descobre que, para voltar à Terra, precisa antes preencher uma espécie de passaporte, com traços de personalidade, gostos e, por último, o propósito.
O quebra-molas no meio do caminho
O problema é que, na verdade, o Além não coloca um propósito no cartão de ninguém. A palavra que os habitantes do outro-lado usam para definir o último espaço do passaporte é spark (que significa faísca, fagulha). Propósito foi uma palavra que só Joe usou, e diz mais sobre a forma como ele encara o mundo do que sobre o que de fato acontece. Aliás, não só como ele encara o mundo. Todos nós. Porque a procura por um propósito é coisa frequente, atraente, quase irresistível.
Pense só: achar um propósito significa, finalmente, achar um caminho para seguir (uma direção, respostas). Ter uma rota traçada, que se sobreponha às incertezas da vida. Se Joe tem como propósito tocar Jazz em clubes, ele pode abrir mão do seu emprego como professor sem medo: o propósito é a certeza. Mas, como você já deve ter adivinhado, essa é uma busca fadada ao fracasso. Na vida, já é difícil achar certezas, imagine só um propósito.
E, agora, você pode estar pensando: sem o propósito, o que sobra? Como viver sem saber onde devo chegar? Peço que não se angustie. Assim como aconteceu com o “felizes para sempre”, você vai ver que já já o propósito não vai fazer assim tanta falta. Porque, para realizar os nossos sonhos, não precisamos que eles sejam o nosso propósito. Dá para percorrer um caminho, mesmo sem saber onde ele vai chegar. E, por último, existem outras formas de se definir spark. Faísca, fagulha ou, como eu prefiro, paixão.
Soul: a jornada
Quando eu falei que Joe percorre o arco do sonho-propósito-paixão, você pode pensar que paixão é o ponto de chegada. E, nesse caso, é mesmo: em termos técnicos, de desenvolvimento do personagem, que não são bem o ponto desse texto. Mas, pensando nos significados dos conceitos, a gente vai ver que a paixão nunca será a chegada. Veja só: sonho e propósito são palavras que pertencem ao futuro. São objetivos, que se reportam ao lugar em que quero estar amanhã, mas sei que não estou hoje.
Paixão, por outro lado, é uma palavra do presente. É o que eu gosto de fazer, o que me dá alegria. A paixão acontece dentro do agora, do momento. E a paixão tem tanta relevância que tem o poder de carregar o momento, o presente, para o futuro. No propósito, a gente esquece do presente para planejar o futuro. Na paixão, a gente vive o presente e nem percebe que, com isso, influencia o nosso futuro.
E viver o presente é, justamente, viver a vida. Esta é a maior lição de Soul: a vida existe para ser vivida. Não é preciso traçar uma rota, há mais coisas entre o céu e a Terra do que sonha nosso vão planejamento. Quando Joe revê os momentos mais significativos da sua trajetória, não há nenhuma cena de planejamento. Ele se vê andando de bicicleta, sentindo o calor do sol. E, claro, tocando piano. Mas não porque é o propósito dele. É só porque é a paixão, mesmo. Isso é o suficiente.
Direção: Pete Docter
Roteiro: Pete Docter & Mike Jones & Kemp Powers
Edição: Kevin Nolting
Fotografia: Matt Aspbury & Ian Megibben
Design de Produção: Steve Pilcher
Trilha Sonora: Trent Reznor & Atticus Ross
Elenco: Jamie Foxx, Tina Fey, Graham Norton, Rachel House, Alice Braga
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