‘A Família Mitchell’ e o poder da animação
Última atualização: 23/05/2021
Nós já vamos falar de A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas. Mas, primeiro, uma adivinha:
Enquanto você pensa, algumas curiosidades sobre a animação da Netflix:
- Você sabia que o cabelo da família foi feito com pincéis virtuais de aquarela?
- E que a jaqueta de Rick foi o acessório mais caro que a Sony Pictures Animation já produziu?
- Aliás, sabia que esse mesmo estúdio foi o responsável por Homem-Aranha no Aranhaverso?
Pronto. Já deu tempo de pensar. Agora, vou revelar qual é o item obscuro que está em todo filme… E também no seu celular!
É a câmera. 😲
O ponto de partida de qualquer filme
Não tem para onde correr: todo filme começa com uma câmera. Até mesmo as animações. A única diferença é que nos desenhos a câmera geralmente é virtual. Digo geralmente porque o stop motion, por exemplo, ainda depende de um dispositivo real.
Aliás, essa distinção entre virtual e real traduz bem a história da câmera. É que, quando ela surgiu, era vista como uma forma de retratar a realidade. O crítico André Bazin escreveu um ensaio bem famoso sobre o tema, que você pode encontrar aqui. Nele, Bazin argumenta que, com o surgimento da Fotografia e do Cinema, as artes plásticas se despreenderam da obsessão pelo real. Ou seja: a câmera, que podia gerar uma cópia da realidade em um instante, libertou a pintura de tentar fazer o mesmo.
Mas acontece que a liberdade é contagiosa. Não demorou para a câmera também se libertar das amarras do real. No expressionismo, por exemplo, a construção de cenários marcadamente artificiais, com visuais distorcidos e sombras alongadíssimas, servia para afastar a realidade da tela. O experimentalismo foi um pouco mais longe: em algumas ocasiões, a película era alterada diretamente. Isso era feito pela modulação da luz que entrava em contato com o filme.
Por meio dessa técnica, a vanguarda experimental conseguia criar imagens que não existiam na realidade. E, se é para falar de imagens inventadas, vamos partir logo para o gênero que aperfeiçoou isso: a animação.
A Família Mitchell e a Revolta do Realismo
No último tópico eu falei que a câmera livrou a pintura da busca pelo realismo. Mas o que acontece quando a gente aponta a câmera para uma pintura?
Bom, acontece a animação. Esse gênero consegue unir as artes plásticas e o Cinema na libertação do real. Hoje, com o uso de softwares inteiramente virtuais, a coisa fica ainda mais intensa. É possível filmar imagens inventadas a partir de uma câmera também inventada, que só existe em um espaço virtual.
Eu sei que isso pode parecer técnico demais, abstrato em excesso, talvez até irrelevante. Mas eu prometo que tenho um objetivo. E, para não aumentar meu risco de estar falando sozinha, digo logo qual é:
Todas as animações são iguais, mas algumas animações são mais iguais do que as outras.
O que eu quero dizer com isso é que, apesar dos potenciais criativos da mídia, ainda há animações que buscam o realismo.
Para ficar mais fácil de entender, vou citar um exemplo. O Rei Leão. De 2019. Essa versão fracassou por um problema de conceito. Basta dizer que o filme tentou unir animação, gênero que dá movimento a seres inanimados, e live action, que se refere a filmagem de atores reais.
Por outro lado, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas é um filme de animação que não te deixa esquecer disso. Além dos visuais estilizados dos personagens, as cenas são cheias de rabiscos, colagens e onomatopeias. E isso acontece por causa de uma personagem: Katie Mitchell.
As visões de Katie Mitchell
A visão de Katie é um recurso que o filme utiliza para mostrar a personalidade da protagonista, Katie Mitchell (Abbi Jacobson). É como se, depois que o filme estivesse pronto, a equipe entregasse o arquivo para Katie Mitchell fazer a pós-produção. As cenas são cheias de desenhos em 2D e colagens, rabiscados por cima da ação. Nesse vídeo, a designer de produção Lindsey Olivares mostra como o processo é feito. Nele, primeiro ela mostra a cena sem a visão de Katie, para depois inserir esse recurso narrativo na sequência de ação. O resultado, além de mais dinâmico, é visualmente mais interessante.
E tem um propósito: a visão de Katie reflete, justamente, a forma como ela enxerga o mundo. Através dos rabiscos, conseguimos identificar os sentimentos da protagonista e, em consequência, nos identificar com eles. Ou seja: a utilização de um recurso exclusivamente visual serve para aprofundar a narrativa. Assim, o filme consegue usar a animação para dar mais peso à sua história. Se há alguma dúvida de que filmes animados podem contar boas histórias, A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas a enterrou a sete palmos da terra.
Mais que isso: o filme mostra como, no fim das contas, a separação entre realidade e animação não é tão rígida assim. Ih, agora embolou tudo né. Não se preocupe. Vou explicar.
Mente-se e cai-se na verdade
A citação que dá título a esse tópico é de Clarice Lispector (é dela mesmo, não é que nem as do finado Orkut). A última vez que repeti essa frase foi no texto sobre Nathan for You. Agora, percebo que aquela série tem uma coisa em comum com esse filme. As duas obras têm um comprometimento com a ficção e, ironicamente, se aproximam bastante da realidade. Eu sei, isso parece extremamente contraditório. Mas quero, aqui, explicar a que me refiro quando falo em realidade.
Quando falei da câmera, do expressionismo, do experimentalismo e da animação, tudo como uma forma de fugir do realidade, falo do realismo estético. Mas a realidade, em si, não é só estética. De novo, retomando uma citação antiga: Realidade é aquilo que, quando se deixa de acreditar em sua existência, não desaparece. Por exemplo: angústia, tristeza, solidão, são sentimentos que estão presentes, de uma forma ou de outra, na realidade de qualquer pessoa. E que podem ser retratados através de um rosto com uma lágrima, mas também através de…
Borrões pesados de tinta. Uma música, em um campo harmônico menor. Uma caveira, com raios e arrobas. Há infinitas formas de traduzir sentimentos e, por isso, há infinitas formas de se traduzir a realidade. Na realidade, nós não conseguimos enxergar os nossos sentimentos, mas são eles que moldam a nossa forma de ver o mundo. Por isso que é tão interessante quando a ficção dá um corpo a eles. A ficção, ou… Katie Mitchell.
Assista clicando aqui.
Direção: Michael Rianda & Jeff Rowe
Roteiro: Michael Rianda & Jeff Rowe
Edição: Greg Levitan
Direção de Arte: Toby Wilson
Design de Produção: Lindsey Olivares
Trilha Sonora: Mark Mothersbaugh
Elenco: Abbi Jacobson, Danny McBride, Maya Rudolph, Olivia Colman, Michael Rianda
Ah, Marina. Eu já gostava muito do filme e depois de ler sua explanação gosto mais ainda. Concordo demais com tudo o que você disse.
Valeuuu Mine!!