Doutor Gama
Última atualização: 31/08/2021
Outro dia, recebi um tuíte que imediatamente compartilhei com muitos de meus contatos. “Fulano acha que aproximadamente 338 anos de escravidão no Brasil não deixaram sequelas, mas que 12 anos de PT aniquilaram o Brasil”. Neófita na rede do passarinho, todos os dias me espanto com a capacidade de síntese que as pessoas demonstram nos 280 toques permitidos para cada tuíte. Analogamente, essa mesma capacidade se revela nos 92 minutos de Doutor Gama, de Jeferson De, disponível na Globoplay. Capacidade em forma e conteúdo, é importante dizer.
Em que medida a insensibilidade nacional causada pelo racismo estrutural, lapidado por três séculos de escravidão, sustenta o retrocesso civilizatório em curso no Brasil? Qual é a participação, nesse processo, dos discursos institucionais e históricos que retiram das pessoas escravizadas e seus descendentes qualquer agenciamento na construção do país? E, num caminho inverso, como o registro cinematográfico, em ficção e documentação, pode nos ajudar a compreender, a nós, pessoas brancas, que qualquer História do Brasil que invisibiliza o horror da escravidão e a luta das pessoas escravizadas por sua liberdade e pelo Brasil não passa de fake news?
Para muitos de nós, brancos, pensar as perguntas enunciadas no parágrafo anterior tornou-se possível apenas no século 21. Afinal, só recentemente tomamos conhecimento, e já não era sem tempo, da farta literatura ficcional e científica produzida por intelectuais negros no mundo inteiro. Na transposição cinematográfica, essa literatura tem sido forjada por meio da inserção de um olhar opositivo (termo de bell hooks). Por isso, vai além da perspectiva geral, macrossocial, que permeia muitos filmes brasileiros de décadas passadas sobre a escravidão. Ela penetra no espírito das pessoas e faz emergir o que há de sentimento profundo, existencial e afetivo, na vida das pessoas escravizadas e seus descendentes.
Um filme sobre olhares e janelas
É essa literatura que se incorpora, por exemplo, na belíssima cena, em Doutor Gama, de Ana (Teka Romualdo), a mulher que observa longamente o naco de floresta que pode ver da janela. Ela está de costas, mas intuímos seu olhar. É o banzo, a tristeza de sua própria vida que lhe tomaram, sua exclusão forçada de um lugar de desejo. A senhora da casa lhe pergunta o que há. Ela, após longo silêncio, lhe responde: “Nada, não. Eu acho que vai chover.” Ana faz muito bem: como já ensinou bell hooks, “aos escravizados era negado o direito de olhar“.
Jeferson De faz questão de contrastar a cor intensa da floresta com a palidez escurecida do espaço interior. Ao mesmo tempo, busca nos fazer compreender que o cenário que a mulher branca e rica observa em nada se parece com o que Ana vê. E nem há como: como pode alguém que possui pessoas compreender o que representa ser propriedade de alguém?
Mais tarde, compondo preciosa rima, outra mulher estará na mesma janela, mas sua atitude será diferente. Livre, ela invocará os elementos e clamará às entidades da floresta pela vida de Luiz. Com isso, conecta-se à natureza de uma forma que muitos brasileiros naquela época (e nesta agora, não posso deixar de dizer) não eram capazes de compreender.
Lendo a História com a cabeça do século 21
O filme de Jeferson De se compõe de afetos e agenciamentos. Com isso, articula-se às narrativas do feminismo e das escritoras negras. Desde o início, Luiz busca ligar-se a pessoas, homens e mulheres. Por exemplo, o vínculo com a mãe (Isabél Zuaa, presença poderosa que atravessa todo o decorrer do filme), ambos livres, ela uma agente do movimento abolicionista, é violentamente rompido para o pagamento de uma dívida. A amizade com Santos (Romeu Evaristo), o escravo que o ampara na infância traumatizada, é retomada para o cumprimento de uma grande missão. Seu amor pela família se manifesta na escrita, o bem maior que lhe abre as portas à reconquista da liberdade.
Por isso, é um alívio que Jeferson De não tenha transformado Doutor Gama em um filme fetichista. O horror da escravidão se desvia do sangue derramado e se mostra de outra maneira. Está na separação das famílias, na repressão ao sentimento, na covardia, na vingança, no discurso cínico. “Você é praticamente da família”, afirma, pela enésima vez, o proprietário de Luiz. A imagem do branco estuprador se aproximando de sua vítima, mas sem tocá-la, é repetida várias vezes para nos darmos uma mínima conta do que ela sofria continuamente.
Da mesma forma, Jeferson De, em conformidade com o discurso enxuto dos tempos de Twitter, não destina muito de seu filme ao processo de escravidão de Luiz, sua libertação e seu enfrentamento do sistema racista que impediu sua graduação em São Paulo. Disso, só ficamos sabendo se lermos sua biografia. Na primeira metade do filme, as cenas não recebem mais tempo do que o necessário para que conheçamos os aspectos principais de sua vida. Às pessoas brancas que o escravizam, bem como às que o ajudam, confere-se, acertadamente, o estatuto de coadjuvantes.
Doutor Gama fala de certezas e de contradições
Entretanto, essa afinação com o presente não se limita ao tempo e ao contexto. Ela inclui também o discurso, sobretudo para marcar Luiz Gama como um homem que inaugurou o futuro do Brasil quando isso significava mais risco de vida do que significa hoje (sim, ainda significa). “Pessoa escravizada” e “homem preto”, expressões faladas por Luiz Gama, são termos que nasceram nas ciências sociais e no movimento negro, e ratificam a mente ousada do personagem. Mas se ratifica, também, a contradição que se impõe ainda no presente, quando pessoas negras declaram práticas relacionadas a universos brancos de conhecimento (falar línguas estrangeiras, por exemplo) para se validarem na sociedade.
Mas a linguagem que recorta a mudança dos tempos não está apenas na fala de Luiz Gama. Como exemplo, a fala “tempos sombrios os de hoje”, expressão polissêmica que sai da boca do advogado escravagista e monarquista, ainda se repete entre os reacionários. Manifesta o pânico diante das conquistas dos estudos e movimentos sociais. Revela o medo da perda dos privilégios de raça, gênero e classe estabelecidos nos tempos da escravidão.
Da mesma forma, toda a segunda metade do filme opta pela forma contemporânea de salientar o agenciamento de homens e mulheres na construção histórica. Essa parte se destina à missão de Luiz Gama que o revelará como o brilhante advogado autodidata e escritor. E o espectador só agradece.
O melhor cinema brasileiro é permeável à expansão do conhecimento
Nesse sentido, ao também abordar o crime de re-escravização de pessoas já libertas pela lei da época, Doutor Gama se mostra infinitamente superior ao estilizado Doze anos de escravidão, de Steve McQueen (2013). Doutor Gama realiza essa denúncia e promove o devido reparo pela ação de pessoas negras, e não de salvadores brancos. Portanto, o filme transforma a História oficial. Descortina os diversos agenciamentos de homens e mulheres, pelo discurso ou pelas armas, em direção à sua justa liberdade. E o faz sem o alarde hollywoodiano, respeitando o inerente e inevitável impacto das cenas e das atuações na mente do espectador.
Doutor Gama é mais uma obra a nos ensinar que a Arte, por ser livre de toda a amarra institucional, se antecipa à Filosofia e à Ciência. Entretanto, a transformação metodológica que os saberes recebem nestes dois campos de conhecimento retorna à Arte. Similarmente, esta, por sua vez, alimenta tudo de novo, num ciclo que nunca se fecha, e sempre se renova. Arte, Filosofia e Ciência se afetam e se nutrem mutuamente, num moto contínuo, para sempre. Em meio a esse movimento magnífico, está Doutor Gama, a história de um dos membros do seleto grupo de brasileiros que realmente merecem ostentar esse título.
Direção: Jeferson De
Roteiro: Luiz Antônio
Edição: Jeferson De
Fotografia: Cris Conceição
Design de produção: Thales Junqueira
Trilha Sonora: Tiganá Santana
Elenco: César Mello, Angelo Fernandes, Pedro Guilherme, Romeu Evaristo, Mariana Nunes, Samira Carvalho, Johnny Massaro, Higor Campagnaro, Teka Romualdo