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‘Minding the gap’ e a masculinidade tóxica

Última atualização: 07/09/2021

Assistindo a Minding the Gap (2018), o maravilhoso documentário de Bing Liu que concorreu ao Oscar de 2019 e agora está disponível no Globoplay, não me saiu da cabeça a imagem de uma flor desabrochando aos poucos, revelando cores, formatos e perfumes que o botão inicialmente não anuncia. Com efeito, as primeiras imagens de Minding the Gap mostram três meninos, sendo Liu um deles, que firmaram amizade através do skate. O que logo se imagina é que o documentário tratará da importância do esporte em suas vidas.

Contudo, o correr das cenas não tarda a mostrar que novas pétalas se abrem. Ao atingirem a maioridade civil, os amigos têm de enfrentar todas as obrigações da vida adulta. Mas esse momento ainda é um estágio do desabrochar da obra de Liu, uma vez que a flor completamente aberta revela o objetivo principal do filme: mostrar como a masculinidade tóxica impregnou a vida dos três amigos, reprimindo sentimentos e sonhos surgidos na juventude e transformando sua vida num inferno.

Eu não disse que essa flor não tinha espinhos…

Um filme feito para que lacunas sejam percebidas

Tendo escolhido um título bem mais instigante do que o deste artigo, que entrega logo tudo de uma vez, Liu nos permite imaginar um outro tipo de raciocínio. Ele parte da expressão minding the gap, que pode significar, entre outras coisas, o reconhecimento de vãos, lacunas. Por exemplo: aviso do metrô de Londres para chamar a atenção dos passageiros sobre o cuidado com o vão entre o trem e a plataforma, a frase “mind the gap” é uma das marcas registradas da cidade. Por consequência, ganhou os metrôs de outras cidades, inclusive o do Rio de Janeiro, que transmite o aviso em português e em inglês.

A metáfora proposta por Liu expande a ideia inicial da expressão. Assim, ao longo do filme, também vamos descobrindo o trabalho longitudinal do diretor. Ele filmou aos amigos e a si mesmo ao longo de quase uma década, a fim de descobrir os vãos e lacunas construídos em suas vidas, os quais agora são causa de grande sofrimento. Encontrar esses vãos pode ser um dos caminhos para uma vida menos infeliz para eles e para quem eles amam.

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Dessa maneira, Minding the Gap é um trabalho de autoconhecimento, relacionado especificamente ao fato de os amigos serem homens e de sua criação ter traços de violência em função de seu gênero. Esse fato conecta Minding the Gap a, por exemplo, The mask you live in (2015), de Jennifer Siebel Newson. Ambos são documentos importantes para os estudos e debates atuais sobre gênero. Da mesma forma, ambos procuram deixar claro que o machismo não faz bem a ninguém.

Minding the gap é uma bússola para entendermos o que é masculinidade tóxica

O que se compreende sob o termo masculinidade tóxica já pode ser considerado um conceito. Afinal, já compõe trabalhos relevantes sobre suas causas e efeitos nas diversas esferas sociais, como este artigo de Susana de Castro, da UFRJ. No entanto, fora da universidade também podem ser encontrados artigos sobre o problema e suas consequências sociais, como, por exemplo, o alto índice de suicídios entre policiais militares brasileiros. Esses trabalhos, em conjunto, nos ajudam a desenhar um quadro razoavelmente preciso do que o conceito enquadra.

Muito basicamente falando, a masculinidade tóxica se caracteriza por três fatores: primeiro, a separação estanque das categorias masculino e feminino. Essa separação impede os meninos de assumir sem repreensão qualquer comportamento e atitude atribuída às mulheres. Ou seja, eles são reprimidos na expressão do afeto, da fragilidade emocional ou da incerteza. Por isso, não podem cuidar com vaidade do próprio corpo, nem praticar outras inúmeras ações tidas como femininas.

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Segundo, não se consegue discutir essa separação estanque, normalmente posta em bases biológicas, entre masculino e feminino. Por isso, ela acaba sendo completamente invisibilizada e naturalizada, sem haver espaço para que seja percebida como algo aprendido, fruto de uma construção histórica e social.

Terceiro, é grande o risco do desenvolvimento, ao longo da vida, de um pânico e um ódio ao feminino. A finalidade disso tudo é a de que os meninos se coloquem o mais distantes possível de qualquer influência das mulheres, e não caiam na “tentação” da homossexualidade.

As lacunas nas vidas de três amigos

O processo de construção da masculinidade tóxica na mente dos meninos inclui uma criação em que a violência é algo corriqueiro. Dessa maneira, as manifestações de emoção, como lágrimas, busca de afeto e contato amoroso físico, são suprimidas ao máximo. Essa repressão é que produz os gaps, as lacunas que Liu busca identificar: o que lhes faltou de amor, de compreensão, de diálogo e proteção. Algo que é negado a muitos meninos apenas porque seus pais acreditam que isso é coisa de mulher.

Liu e seus amigos Keire e Zack se conheceram através do interesse comum pelo skate, e mantiveram a amizade ao longo dos anos. Isso permitiu a Liu filmá-los durante esse tempo. Aos poucos, as vidas dos três meninos vão sendo descortinadas, tanto pela câmera de Liu, quanto por revelações deles mesmos.

A interseccionalidade está presente em Minding the gap

Zack compõe o que se costuma denominar o white trash estadunidense. É aquele segmento da população a quem o american dream não favoreceu, e cujas vidas a crise econômica desencadeada em 2008 piorou mais ainda. Criado sob o regime da masculinidade tóxica, Zack não fala muito de seus pais. No entanto, revela o resultado de sua criação na forma como trata a namorada e o filhinho pequeno. Não hesita em agredir fisicamente a moça e não se constrange muito por privar o pequeno de seu afeto e auxílio material. Sua personalidade instável e violenta é acentuada com o alcoolismo e a certeza de que as mulheres precisam apanhar de vez em quando para conterem seus arroubos emocionais e sua desobediência ao mando masculino.

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Keire, menino pobre e negro, mostra que a condição racialmente desigual na sociedade estadunidense lhe proporcionou meios de pensar sobre si mesmo. Seu pai justificava a violência com que o tratava com o fato de que meninos negros, para enfrentar o racismo, precisam acumular mais carapaças emocionais através da disciplina e do castigo.

A revolta contra o pai não abalou a personalidade construtiva de Keire. Assim, ele passou os anos da juventude procurando meios de escapar do ambiente violento que o cercava. Mas para o rapaz era difícil se afastar da família, mesmo reconhecendo sua toxicidade.

Um filme que é uma declaração de amor

Liu, por sua vez, foi criado por um padrasto violento com ele, seu irmão e sua mãe. A mãe custou a reconhecer a revolta dos meninos. Ela não conseguia reunir autoestima para se livrar daquele homem, e ainda no presente tem dificuldades em falar sobre isso. O momento em que Liu entrevista a mãe ganha um formato em camadas. Liu filma a preparação da filmagem, ajudando a mãe a se instalar e falar diante da câmera, construindo assim um breve documentário do documentário.

A beleza do diálogo com a mãe evidencia o talento de Liu como cineasta. Revela também sua sensibilidade em reconhecer a distância entre o sofrimento das pessoas e suas condições emocionais de falar sobre o que passaram. Igualmente, demonstra seu entendimento de que aquela filmagem precisa ser delicada o suficiente para conseguir revelar as lacunas que sua mãe ainda não pôde perceber. É uma verdadeira declaração de amor e respeito pela mulher que o criou.

Talvez o mais difícil a um ser humano que busca reconhecer as lacunas do seu passado seja compreender as razões daqueles que as provocaram sem se darem conta do que fizeram. Como perdoar quem não sabe o sofrimento que produziu? Como perdoar quem já não mais está ali para ouvir o que precisa ser dito? Como perdoar quem sequer reconhece que o que nos fez foi algo ruim?

Em Minding the gap, saída é pelo perdão

Essas são as perguntas que dizem respeito a cada um dos amigos. E a ideia da masculinidade tóxica tem a propriedade de dar corpo, em seus diferentes detalhes, ao que aconteceu com eles. Ela os ajuda a entender que o sofrimento por que passaram faz parte de uma construção histórica muito mais longa do que o tempo de suas vidas.

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Essa escolha temática coloca Liu, muito acertadamente, por sinal, numa direção oposta ao usual à cultura estadunidense. Esta, que costuma atribuir causas estritamente individuais ao sofrimento psicológico e econômico de cada pessoa. Não se consideram as naturalizações sobre raça, gênero e pobreza que acompanham as ideologias do american way of life.

Liu demonstra compreender isso ao escolher falar de sua vida e de seus amigos por esse prisma. E é também por aí que as formas de lidar com isso vão sendo apresentadas. Aos poucos, Keire e Liu vão se dando conta de que sobre eles foram inculcados uma linguagem e padrões de vida sobre os quais é preciso falar, a fim de que eles possam assumir uma dimensão real e assim serem enfrentados.

Mas Zack ainda permanece num lugar de meramente repetir aquilo que lhe foi dito, sem demonstrar já ter reconhecido as lacunas de sua vida. No entanto, Liu é generoso o suficiente para dar ao amigo um voto de confiança. Isso permite ao filme terminar com uma esperança de que cada um deles possa agenciar para si uma vida com menos rancor, e em que os sentimentos de amor ocupem um espaço relevante.

Mas também é pela potência

A esperança de Liu também está no reconhecimento das lacunas da infância, e de que não é mais possível preenchê-las. Por isso, as possibilidades reais de vida se encontram na descoberta da própria potência e singularidade. Em Minding the Gap, duas ações são fundamentais para isso. A primeira é que, no caso de Keire, o skate, que de início aparece como prazer e alívio para os problemas familiares, é ressignificado como esporte profissional. O rapaz encontra o caminho de vida que sempre buscou ao angariar o patrocínio que lhe permitirá participar de competições oficiais. De fato, poucas coisas são melhores do que a gente ganhar a vida fazendo o que adora.

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A belíssima edição de algumas cenas em que os amigos estão sobre pranchas rasgando as ruas, além de novamente mostrar que o skate os congrega como amigos, revela que Liu compreende plenamente o que significa o esporte para o encontro daquelas pessoas consigo mesmas. E também inspira no espectador o mesmo encantamento que eles experimentam sobre as quatro rodinhas.

E a segunda possibilidade é o Cinema, que para Liu antes era apenas diversão, mas acaba se tornando não apenas uma forma de enxergar as lacunas – em algum momento Keire confessa que ser filmado falando de sua vida é uma “terapia grátis” -, mas também um lugar de existência no mundo.

Contando a própria história para o futuro

O gigantesco talento que Liu revela em seu primeiro trabalho mostra que ele está no lugar certo. Além de dirigir, Liu edita e fotografa seu filme, portanto uma boa parte da beleza e da verdade que Minding the Gap transmite vem de seu trabalho consciente e inspirado.

Liu consegue enxergar que Zack não parece estar no mesmo ritmo de autoconhecimento dos dois amigos. Entretanto, a construção de uma imagem precisa sobre o que pode ser feito para resgatar os sentimentos que uma criação tóxica reprimiu é uma forma de ajudar o amigo que ainda não começou o caminho de compreender o que lhe falta. Com essa ação, Liu auxilia a muito mais pessoas, homens e mulheres, além de Zack. Isso transforma Minding the Gap num documento artístico, existencial e educacional para muito além do contexto que focalizou.

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É doloroso pensar que houve tanto sofrimento nas vidas das pessoas que Minding the Gap apresenta e menciona. Mas o brilhante registro de suas histórias e conquistas traz possibilidades de que mais e mais meninos e meninas possam desabrochar para o amor e para a felicidade.


Ficha Técnica
Minding the gap (2018) – Estados Unidos
Direção: Bing Liu
Roteiro: Bing Liu
Edição: Jodhua Altman, Bing Liu
Fotografia: Bing Liu
Trilha Sonora: Nathan Halpern, Chris Ruggiero
Elenco: Bing Liu, Keire Johnson, Zack Mulligan

 

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