The Bear

Última atualização: 06/04/2023

Talvez seja ponto comum entre os articulistas da Arte audiovisual a ideia de que uma obra que pretende tratar de vários temas ao mesmo tempo corre o grande risco de resultar numa colcha de retalhos sem integridade. Está em risco também uma obra escrita por muitas mãos, as quais em princípio representam diferentes visões sobre o que o trabalho em questão se destina a apresentar. Em ambos os casos, o fiasco se avizinha. The Bear, série da Star+ que aborda diferentes temas e elenca dez roteiristas na sua página do IMDb, corre os dois riscos. Entretanto, além de não cair em nenhum dos dois, escapa deles brilhantemente.

Contudo, não é ponto comum entre as resenhas de The Bear o fato de que a série aborda diferentes temas. Os textos que li salientam a discussão em torno das complexidades da masculinidade ocidental conforme vista contemporaneamente. Não citam, porém algumas das questões que levantarei neste texto. De fato, é forte em The Bear o questionamento nutrido pelos estudos atuais sobre o gênero masculino. Mas essa é apenas uma faceta do fascinante trabalho criado por Christopher Stoler (cinco episódios) e Joanna Calo (três episódios). Há muito mais a ser dito.

Carmy as a chef

Muitos temas atravessam a trama iniciada com a chegada de Carmen “Carmy” Berzatto (Jeremy Allen White) à lanchonete da família, que ficou sem direção (em quase todos os sentidos) após a morte de seu irmão. Chef do melhor restaurante do mundo segundo respeitada revista de gastronomia, Carmy larga tudo para cozinhar e administrar uma espelunca situada numa região desprivilegiada de Chicago, onde os traficantes trabalham tranquilamente na calçada. O relacionamento entre Carmy e as pessoas que agora são o seu presente dispara todos os gatilhos emocionais possíveis, mesclados aos fantasmas de um passado que se revela presente também.

Falar sobre afeto entre homens é falar sobre gênero

As resenhas de The Bear salientam unanimemente a memória desequilibradora de Mikey, irmão de Carmy. Para viver o carismático personagem, escolheu-se acertadamente o também carismático Jon Bernthal. Com sua atuação, Bernthal neutraliza o potencial problema de não se parecer fisicamente com os atores que interpretam seus irmãos. Além de Jeremy Allen White, Abby Elliot completa o trio vivendo a irmã Sugar.

Mikey é o grande macho alfa que permanece vivo na experiência de pelo menos dois personagens masculinos. Além de Carmy, o “primo” Richie Jerimovich (Ebon Moss-Bachrach) se desestrutura ainda mais ao ser obrigado a encarar seus próprios demônios sem o esteio afetivo que a presença poderosa de Mikey oferecia.

A incapacidade emocional de Richie pode ser lida como uma das facetas do que hoje denominamos masculinidade frágil, denunciadora de uma psique também frágil, mascarada pelos estereótipos do macho poderoso.

Richie

Numa significativa cena de encontro às cegas, Richie revela sua dependência emocional de Mikey, ao mesmo tempo em que lhe é jogada na cara sua incompetência diante dos problemas mais cotidianos. Lida com eles pessimamente, com a violência comum aos homens infantilizados.

Por sua vez, Carmy também é forçado a lidar com outro tipo de infantilidade, esta de natureza psicanalítica. Sem um pai para lhe servir de exemplo, desde criança Carmy elege Mikey como exemplo de homem. Por isso, a recusa do irmão à sua presença na lanchonete familiar provoca sua saga em busca do reconhecimento de Mikey, que sente nunca ter recebido. Seu crescimento profissional é alegadamente um resultado do seu empenho em ser amado pelo irmão, mantendo até a idade adulta os mesmos desejos de menino por afeto paterno.

The Bear e seus temas magistralmente articulados

Contudo, em torno das projeções masculinas que bagunçam estruturalmente as vidas de Carmy e Richie, The Bear articula outras questões existenciais. Aqueles dois personagens transitam em meio a diversas figuras cujas tramas se desencadeiam não com a morte de Mikey, mas sim com a chegada do brilhante Carmy, cujos desejos infantis o impedem de enxergar a própria presença potente.

Aqui preciso abrir parênteses para salientar outra das armadilhas em que The Bear poderia incorrer, mas de que inteligentemente escapa. A série nunca escorrega na saída fácil do luto como justificativa para o descontrole emocional dos personagens. Ainda bem, porque há muito mais a falar sobre pessoas impactadas por mudanças que elas enfrentam de diferentes maneiras.

Sidney

A reação das pessoas à proposta de Carmy para uma organização hierarquizada na lanchonete tornam The Bear também uma série sobre o que a necessidade de aprendizado desencadeia nas pessoas. Pânico, sabotagem, intolerância, mas também motivação, serenidade diante do novo. E sobretudo, o vislumbre de espaços abertos a novas experimentações.

Assim, os funcionários do restaurante, todos ali amontoados no ambiente claustrofóbico de uma cozinha minúscula, são forçados necessariamente ao contato íntimo com os outros que lhes são tão diferentes. E esse contato produz confrontos inevitáveis, mas em alguns momentos faz também olharem com generosidade para os outros e para si mesmos.

A estrutura narrativa compósita de The Bear

A complexidade da armação temática de The Bear que a crítica elogia se acompanha de uma complexidade estrutural. Esta se beneficia do formato série, que, mesmo breve, no caso da obra em questão, nos permite o tempo de reconhecer as linhas de condução da narrativa e articular os acontecimentos que giram em torno dela.

Nesse sentido, os criadores de The Bear compreenderam que nem sempre o eixo da narrativa está em algum personagem presente. Na série, correm paralelas as figuras de Carmy, e também de Mikey, como os dois grandes eixos desencadeadores de todos os acontecimentos.

todos

A presença de Mikey não apenas se evidencia nas frequentes menções e ele ao longo dos episódios. A par de Carmy, Mikey é o outro protagonista de The Bear, e isso parece ter sido assumido por seus realizadores. Mikey engatilha a maioria das tramas que compõem a narrativa central da série. Como personagem onipresente, ele é causa dos acontecimentos ao mesmo tempo em que define Carmy como o outro protagonista. Este, por sua vez, apenas entra na vida dos outros personagens e passa a desencadear a narrativa a partir do momento em que Mikey lhe dá espaço. Além de reorganizar a lanchonete, talvez a única ação estrutural autônoma de Carmy seja a de contratar a chef Sidney (Ayo Edebiri).

Uma cena muito especial

A definição de dois eixos estruturais para The Bear confere à série uma forte amarração entre seus elementos. Mas também serve de parâmetro para reconhecermos quando outras obras análogas não logram o mesmo sucesso. Por exemplo, o filme A Baleia, de Darren Aronofsky, a par de todos os problemas temáticos em que incorre, também apresenta a questão de não reconhecer que, junto ao protagonista Charlie (Brendan Fraser), há um outro protagonista paralelo a ele (e talvez até mais importante estruturalmente), como elemento desencadeador da narrativa que culmina nos dias que o filme recorta. O não reconhecimento desse outro protagonista ocasiona as inúmeras pontas soltas e os temas abandonados e negligenciados que identificamos no filme.

Todas as virtudes de The Bear estão sumarizadas na magnifica cena do almoço em família, a única cena que inclui a presença física de Mikey. Estão ali contidos e firmemente atrelados não apenas os dois eixos narrativos da série, mas também a relação paradoxal que se estabelece entre eles.

Jon Bernthal

Atravessando uma aparentemente inocente história contada por Mikey, comparecem os elementos que desequilibrarão e revelarão o tamanho do recalque que Carmy impôs sobre seus sentimentos e carências infantis.

Mikey declara que contará uma história pitoresca, e imediatamente todos se voltam para ele, patenteando seu imenso carisma. Ao mesmo tempo, o personagem prepara uma receita familiar, anunciando que fará uma pequena mudança, e todos tratam aquilo como algo muito importante. Faz tudo isso sob o olhar de Carmy, àquela altura muito provavelmente um chef de sucesso, mas que diante do irmão sem criatividade na cozinha se reduz a sous-chef, apenas enrolando os bifes que Mikey temperou.

Desconstruindo certezas

Nesta cena, a meu ver, está a perfeita ambivalência de The Bear, que mescla definitivamente os dois protagonistas-irmãos, e ao mesmo tempo nega respostas sobre a verdade entre eles, já que um deles não pode mais se manifestar. Já sabemos por que Carmy aceitava ser o sous-chef do irmão. Mas por que Mikey fez questão de dispensar o talento do irmão no ambiente familiar? Tais momentos seriam apenas para compensar um pouco o fato de que nunca teria profissionalmente a mesma dimensão de Carmy?

Será que Mikey mantinha Carmy longe de seu restaurante para não se ver diminuído diante de um verdadeiro grande chef? Ou essa era sua forma de dizer ao irmão que o lugar deste era nos melhores restaurantes do mundo, e não numa espelunca de bairro?

Carmy limpando

A cena do almoço familiar é um divisor de águas na série. Antes dela, alimentávamos respostas definidas sobre a relação de Carmy com a vida. Mas, depois dela, nossas certezas começam a se esvair com grande facilidade.

Recusar-se a nos dar respostas é também uma das grandes qualidades de The Bear. E o que vemos na tela nos ajuda, assim como acontece com os personagens, a desconstruir certezas sobre nós mesmos e o papel de outras pessoas em nossas vidas.


Ficha Técnica
The Bear (2022) – Estados Unidos
Direção: Christopher Storer, Joanna Calo
Roteiro: Karen Joseph Adcock entre outros
Edição:  Joanna Naugle, Adam Epstein
Fotografia: Andrew Wehde
Design de Produção: Merje Veski, Sam Lisenco
Trilha Sonora: J. A. Q
Elenco: Jeremy Allen White, Jon Bernthal, Ebon Moss-Bachrach, Ayo Edebiri, Abby Elliott

 

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