bandeira destacada

Nossa bandeira é a morte

Vêm da Nova Zelândia duas produções que, mesmo sem a radicalidade genial de Kelly Reichardt em First Cow, problematizam as estruturas narrativas ficcionais que louvam a masculinidade. Em Ataque dos cães, Jane Campion vira o western pelo avesso descrevendo o violento luto do cowboy selvagem encarnado inesquecivelmente por Benedict Cumberbatch. Analogamente, na plataforma HBOMax, Taika Waititi produz e protagoniza Nossa bandeira é a morte. Na série, conhecemos a história do pirata que entra em crise de masculinidade, mas recebe uma mãozinha de outros piratas bem mais resolvidos do que ele.

Assim, a Oceania se coloca na vanguarda das propostas de evolução civilizatória vindas do audiovisual. Já podemos nos inspirar no que vem do outro lado do mundo para a necessária e cada vez mais urgente construção de linguagens para escapar do horror assassino que a estrutura patriarcal predatória do Ocidente tem provocado.

bandeira morte capitão

Por exemplo, em números brasileiros, uma mulher é estuprada a cada 10 minutos, e um feminicídio ocorre a cada 7 horas. Na contabilização geral, a taxa de feminicídios brasileira é a quinta maior do mundo.

Nossa Bandeira é a morte é sobre o desejo de uma outra vida

Sobre a série, não se pode fugir da forte suspeita de que Waititi recentemente dirigiu Thor: amor e trovão para pagar os boletos e ficar livre para produzir e subverter à beça com a história de dois personagens que realmente existiram: Stede Bonnet, o Pirata Cavalheiro, e Edward Teach, o temível Barba Negra.

Bonnet (o também neozelandês Rhys Darby, absolutamente à vontade) abandona uma vida de luxo e um casamento sem graça para se aventurar pelos mares do Caribe realizando seu sonho de infância: ser um pirata. Em meio a ações um tanto atrapalhadas que não lhe conferem nenhuma moral junto aos comandados, chama a atenção do Barba Negra (Waititi, maravilhoso).

bandeira morte pirata cavalheiro

Ambos se sentem mutuamente atraídos, inicialmente por desejo de uma vida em que o outro era soberano. Mas logo seus espíritos afins se revelam, tornando-se inseparáveis. A trama da série se amarra, em princípio, em torno de mundos que se chocam. Mas nela emerge também o conflito entre símbolos importantes que identificam a natureza radicalmente masculina e violenta do mundo da pirataria.

Desconstruindo a pirataria

Um dado interessante da série é que a existência dos protagonistas vivendo separados é algo que não agride os demais piratas que os conhecem. Dentre eles, o Barba Negra é considerado o mais violento e, por isso, o mais admirado. Por sua vez, nos diferentes lugares em que seu navio aporta, o Pirata Cavalheiro em si em nenhum momento parece ameaçador ou incomodativo aos demais. Considerado um tanto excêntrico por seus modos gentis e figurino elegante e fino, mesmo assim Stede Bonnet também é admirado por seus contemporâneos.

bandeira morte Izzy

Seus comandados, entretanto, não acreditam muito que seu capitão um dia irá realizar os feitos típicos dos grandes piratas: roubos e pilhagens espetaculares, torturas, assassinatos. Eles mesmos não estão nada interessados na “realização do paradigma do macho”, nos termos de Luiz Eduardo Soares. Vivem gostosamente, no navio que Bonnet mandou construir e transformou em uma espécie de bunker. A permissividade deles é quase impensável aos homens de sua, digamos, “profissão”. Algo certamente franqueado por seu líder.

O todo é maior do que a soma das partes

O problema surge quando Bonnet e Teach se identificam mutuamente, a partir do que um observa no outro como objeto de seu desejo. O Pirata Cavalheiro deseja a coragem confiante e a aura de poder que circunda a figura do Barba Negra. Este, de sua vez, deseja a verdadeira classe e elegância de seu “colega”, provada mais de uma vez em determinadas ocasiões. Em uma, em especial, o Pirata Cavalheiro lhe mostra o que é de fato ser um nobre.

Para os outros à volta, torna-se óbvio que eles juntos inauguram uma terceira entidade: uma força incomum, advinda da mesclagem entre masculino e feminino, cada qual na sua melhor versão. Não faz diferença que se trate de homens, já que a aderência de uma ou outra força a um e outro gênero é apenas uma construção histórica e social. Tanto é que as mulheres da série também são violentas, o que não as impede de, em algum momento, cultivarem entre si alguma camaradagem.

bandeira morte mulheres

Algumas reações à combinação explosiva entre os protagonistas são de acolhida e felicidade. Elas vêm sobretudo de quem já desconstruiu a masculinidade violenta típica daquele universo contraventor. Porém, também há forte reação ao afastamento do Barba Negra na direção de uma vida em que masculino e feminino se mesclam com alegria, potência e arte.

Os brutos também amam

E é aí que o grande conflito da série se delineia. Por ação de Izzy Hands (Con O´Neill), outro personagem ambíguo, como são muitos deles em Nossa bandeira é a morte, forma-se um triângulo amoroso no mais puro estilo broderagem.

Em seu centro, o Barba Negra precisa resolver se prefere seguir nas novas descobertas sobre si mesmo, seu gênero e sua sexualidade, o que o levaria a optar pela vida com o Pirata Cavalheiro. Ou se obedece à fama que sempre cultivou, e retorna ao mundo de pilhagem e crime própria dos piratas, eliminando de vez o incômodo que em algum momento balançou seu coração. Sempre pela violência, porque é esse o signo da masculinidade misógina.

bandeira morte Bonnet Teach

Talvez, acho, muitos homens já estiveram nesse triângulo, não necessariamente amoroso, e a vida que se seguiu revela a escolha que fizeram, e a forma como a fizeram. Escolhem não raro sob a promessa de algum poder, por menor que seja, para, quando muito, descontar nos subordinados a opressão que sofrem fora de casa.

Por isso, e acima de tudo, abrir mão do poder foi a decisão de Stede Bonnet e Edward Teach que mais deixou em pânico aqueles que desejavam a vida marcada pela força bruta e pelo medo – aspectos dos piratas mais admirados na série.

Nossa Bandeira é a morte é uma série anti-misógina

Em suma: ao fim dos dez episódios, posso concluir que Nossa Bandeira é a morte é uma série anti-misógina. Uso o termo aqui em paralelo e cotejo com o conceito de anti-racismo, que significa uma agentividade pró-ativa em favor de um mundo não mais definido por desigualdade e injustiça baseadas em padrões raciais.

Nesse sentido, Nossa bandeira é a morte é uma produção anti-misógina porque confronta o que há de pior quando o mundo dos homens rejeita os elementos da força feminina como parte de sua composição. E mais que isso: mostra como a vida melhora quando homens e mulheres optam por viver em comunhão de potências.

No período da série, e nesse sentido ela é fidedigna com seu tempo, ainda é difícil de isso acontecer. Uma evidência disso é a impossibilidade de que Bonnet e sua esposa possam cultivar alguma convivência, embora haja respeito entre eles.

bandeira morte navio

Contudo, Edward Teach encontra a plenitude na forma como homens dividem um espaço físico no navio de Bonnet. É uma vida muito mais interessante e feliz do que aquela que usufruía em seu navio. Isso torna a série inspiradora de significados e reflexões sobre a masculinidade para além do que muitas obras de ficção sobre o assunto propõem.

Inegavelmente, algumas obras abrem e expõem sem anestesia os cânceres metastáticos da humanidade. The boys, na Amazon Prime, e White Lotus, na HBOMax, fazem isso. Outras, como Nossa bandeira é a morte, optam por articular forma e conteúdo numa proposta estrutural única, que imagina outros mundos possíveis. Isso é que as torna tão subversivas e transformadoras, capazes de projetar melhores relações humanas.

É pelo humor que os homens aguentam olhar para si mesmos

Por essas razões é que considero Nossa bandeira é a morte como uma das melhores e mais importantes produções do audiovisual em 2022. A sutileza e delicadeza na apresentação das questões temáticas da série são um convite à inteligência do espectador.

Faz parte dessas características o fato de a série, através do humor, apresentar problemas que hoje são o cerne de nossa ameaça de atraso civilizatório. Nomeadamente, trata-se do patriarcado misógino e absoluto, incapaz de dividir espaços com quem não é considerado um igual.

bandeira morte barba negra

Como resultado, a opressão dos homens misóginos sobre toda forma de feminino é algo extremamente violento e ameaçador. Assim, para que os homens possam olhar para si mesmos e para a própria misoginia, talvez apenas pelo humor isso poderá ser feito sem que eles se horrorizem consigo mesmos a ponto de não mais terem a coragem de constatar que compartilham seu gênero com estupradores e assassinos.

Para os que ainda conseguem rir de si mesmos, Nossa bandeira é a morte oferece algumas saídas para uma vida sem a obrigação de provar para os outros o tempo todo que se é macho.


Ficha Técnica
Our flag means death (2022) – Estados Unidos
Direção: Fernando Frias
Roteiro: David Jenkins
Edição: Christian Kinnard
Fotografia: Mike Berlucchi, Cynthia Pusheck
Design de Produção: Ra Vincent
Trilha Sonora: Mark Mothersbaugh
Elenco: Taika Waititi, Rhys Darby, Con O´Neill, Claudia O´Doherty, Vico Ortiz, Leslie Jones, Rory Kinnear,

 

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