‘First Cow’: o que torna a Arte extraordinária?

Última atualização: 28/07/2021

Recentemente, para divulgar a produção em massa da vacina Coronavac pelo Instituto Butantan, de São Paulo, o MC Fioti gravou um clipe com uma paródia de seu funk “Bumbum tantan” no prédio do Instituto. Por consequência, muitas pessoas tomaram conhecimento da existência do funkeiro. Contudo, o mesmo não pode ser dito acerca de um quarto da população mundial, que já acessou pelo menos uma vez o vídeo original de Bumbum Tantan. Sim, neste momento em que escrevo, o vídeo do funk já recebeu mais de um bilhão e meio de acessos no Youtube. Além disso, outros a ele relacionados também receberam acessos na casa das dezenas de milhões. O que isso tem a ver com First Cow: A Primeira Vaca da América (2019), filme de Kelly Reichardt? Dedico este texto a explicar.

Não, eu não acho que “Bumbum Tantan” é uma obra de arte extraordinária. O que me causa admiração é uma das obras do músico extraordinário em que MC Fioti se inspirou para compor seu funk. É a Partita em Lá menor, lindo solo para flauta composto por Johann Sebastian Bach provavelmente em 1722. Em que medida a inspiração em Bach, o maior compositor da história da música ocidental, contribui para a assombrosa quantidade de acessos que um funk aparentemente sem nada de especial já recebeu?

Obras extraordinárias
O luterano Bach provavelmente gostaria de saber que sua música serviu para homenagear a Coronavac, a vacina saliente.

Além da presença de um ou outro trecho da “Partita em lá menor” em seu funk, há uma segunda relação entre MC Fioti, aliás entre todos os compositores populares do ocidente, e Johann Sebastian Bach.

Bach inventou a forma ocidental de pensar a música

Pode-se atribuir a Bach a existência da música popular conforme a conhecemos no presente. O compositor alemão transformou um padrão de afinação, o chamado padrão temperado, que se baseia numa oitava composta de doze notas (são doze as teclas de cada oitava do piano), de dó a si, incluindo sustenidos e bemóis, em um sistema de organização de doze escalas, uma para cada nota, multiplicadas pelos dois modos mais populares – o maior e o menor.

Bach articulou esses 24 pequenos universos para compor um só sistema musical. Com isso, favoreceu uma série de práticas e compreensões que hoje constituem a racionalidade musical ocidental. Primordialmente, tornou-se possível afinar articuladamente vários instrumentos, e assim organizar uma orquestra. Além disso, abriu-se espaço para a criação de acordes em número praticamente infinito, rompendo-se com a limitação que o número de sons que as cordas ou teclas de um instrumento impõe. Em suma: a forma de reconhecer, fazer e compreender a música conforme fazemos hoje, devemo-la a Bach.

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O prelúdio em dó maior, melodia da “Ave Maria”, é a primeira e mais famosa peça do “Cravo bem temperado”, divisor de águas na história da música ocidental

Porém, coisas criadas e aprendidas caminham e se expandem para todos os lados em que elas podem se articular a conhecimentos já existentes. Nesse sentido, podemos dizer que Bach não apenas nos ensinou a pensar melhor a música. Nos ensinou a pensar melhor e de forma mais sofisticada, elegante e aprofundada sobre tudo o que existe no mundo.

Todavia, Bach é apenas um exemplo de pessoa que criou uma racionalidade, ou, em palavras mais sofisticadas, ampliou um campo de pensabilidade. Mas o que significa esse termo?

A arte nos ensina a pensar 

Um campo de pensabilidade é o conjunto de recursos conceituais que temos para dar conta daquilo que estamos vendo. Assim, estarmos situados num dado campo de pensabilidade nos permite não apenas dar nomes às coisas que vemos, mas também entender e descrever o que elas são e como funcionam. Tendo isso em mente, podemos dizer que artistas, cientistas e intelectuais extraordinários são os que oferecem novos elementos para sentirmos, reconhecermos e compreendermos o mundo de novas formas, muitas vezes para além da obra que eles realizaram. Enfim, em última instância, isso nos permite enxergar e identificar muito mais coisas no mundo do que víamos antes.

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O “Rapaz com cesto de frutas”, pintado por Caravaggio em 1593, ainda fere a moral e os bons costumes de muita gente.

Uma obra que amplia um determinado campo de pensabilidade desafia cognitivamente as pessoas. Como resultado, praticamente as obriga a abrir mão daquilo que acreditam, gostam e reconhecem como verdadeiro. Assim, elas poderão acolher as novas possibilidades de visão que as pessoas extraordinárias lhes oferecem.

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Apolo e Dafne, de Bernini, é uma obra belíssima, mas aquela que mudou padrões de pensamento sobre a Arte é o David de Michelangelo.

Já faz algum tempo, venho cultivando o projeto pessoal de estabelecer a diferença entre uma obra de arte que pode até ser muito bela, e uma obra de arte que é extraordinária. O critério que uso para isso é justamente a propriedade dessa obra de ampliar o campo de pensabilidade acerca das coisas do mundo.

Para além do belo

Como afirmei acima, há obras de arte que são belíssimas, foram produzidas com técnica  sofisticadíssima e servem de inspiração para produções artísticas em todos os tempos. Mas há aquelas criadas a partir da invenção de elementos conceituais que nos permitem avançar na técnica, na estética e no conhecimento do que é arte. Esse avanço, em grande maioria dos casos, também motiva novas formas de pensar, não apenas a Arte, mas também o ser humano, a História…

Duas obras extraordinárias, a primeira inspirando a segunda: o quadro “Las meninas”, que ampliou cognitivamente as possibilidades de realização da arte visual, e “Isso Não é um Enterro, É Uma Ressurreição”, que subverteu a ordem de apropriação cultural do Ocidente sobre o resto do mundo.

Pretender  ser capaz de ampliar campos de pensabilidade é um ato de ousadia. Em grande medida, as pessoas enxergam o extraordinário naquilo que não contraria suas estruturas estéticas e/ou de pensamento. Muitas acreditam que o extraordinário está em reproduzir uma dada “realidade”: quanto mais fiel a ela, mais importante uma obra seria. Mas existem pessoas que desejam ser desafiadas e ter suas crenças e convicções abaladas por novas formas de observação de um mundo que por muito tempo foi visto apenas de uma dada forma, e apenas por um ponto de vista.

Uma obra não precisa ser extraordinária para ser inspiradora: o mármore cintilante da Virgem Velada de Strazza se replica na linda dragãzinha Light Fury, de “Como treinar seu dragão”.

Falemos de First Cow

Dedico-me também a reconhecer filmes que ampliam o campo de pensabilidade que a Arte, a filosofia e a ciência inevitavelmente impulsionam. E isso, pelo que tenho percebido, é muito raro. A saber, recentemente, apenas três filmes se encaixam em meus critérios de extraordinariedade: Projeto Flórida, de Sean Baker (2018), Isso Não é um Enterro, É Uma Ressurreição, de Lemohang Jeremiah Mosese (2019), e First Cow. Os três são filmes que subvertem os enquadres cinematográficos hegemônicos para as realidades estéticas, históricas e sociais em que se encaixam. Com isso, propõem novas formas de pensamento e de vida.

Kelly Reichardt definitivamente instaura o feminino como um padrão de linguagem cinematográfica. Sobre essa afirmação, é importante salientar que inúmeras diretoras mulheres já realizaram obras cinematográficas fundamentais para a história do Cinema. Porém, estou discutindo aqui masculino e feminino como estruturas de mundo e formas de linguagem, de estética e de cognição.

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A necessidade de vitória é algo que filmes femininos dispensam.

Depois de Alice Guy-Blaché, que inventou o Cinema como expressão artística, os homens se apropriaram da indústria cinematográfica (inclusive apagando o feito de Blaché). Com efeito, impuseram sua forma de cognição, de linguagem, de estética e de ideologia, e seu sistema de valores como fatores determinantes de construção da narrativa, da delineação dos personagens, do design de produção, e todos os outros elementos formais e de conteúdo necessários à construção da obra cinematográfica. Tanto é assim, que por muito tempo acreditamos que não havia outra forma de fazer Cinema.

First cow caminha sobre o ombro de gigantes

Mesmo com essa imposição hegemônica, diretoras mulheres importantes abriram o caminho para Kelly Reichardt, sobretudo trazendo temáticas femininas para a tela. Em conjunto, elas constituem o que a filósofa bel hooks denomina olhar opositivo: a inclusão levada às últimas consequências. É a inclusão de um mundo que não é branco e masculino, com outros problemas, outros anseios, outros conflitos, outra linguagem que não aquela que só é importante para quem é homem e branco.

Entretanto, mesmo diante da dura conquista das mulheres do direito de poderem falar sobre si mesmas na tela, a prerrogativa de realizar um filme nos Estados Unidos sobre temas que fugissem ao universo feminino sempre parece trazer uma imposição de que a forma de falar desses temas seja uma forma masculina. A grande diretora Catherine Bigelow, a meu ver, é o maior exemplo dessa imposição. Seu Oscar por Guerra ao Terror pode se justificar também pelo fato de que, naquele filme, Bigelow não transgride a ordem masculina de mundo que Hollywood ainda exige.

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Em filmes femininos, o afeto estrutura a narrativa.

Cineastas mulheres foram, ao longo das décadas, pavimentando o caminho para a articulação de todos os elementos artísticos e técnicos presentes em First Cow. Mas, por si, o filme de Kelly Reichardt é a realização total da ideia de que já se pode falar de uma racionalidade cinematográfica feminina: um universo completamente emancipado, independente. E, como se isso não bastasse, capaz de sustentar qualquer gênero cinematográfico. Reinhardt comprova isso, reinando sobre um gênero que não tem como ser mais masculino, o Western, subvertendo-o completamente.

A crítica de Cinema já reconhece os filmes femininos

O texto definitivo sobre First Cow foi escrito por Filippo Pitanga. Nele, há uma série de elementos que tanto materializam a subversão de Reichardt, quanto caracterizam a racionalidade cinematográfica feminina. Pitanga menciona o espírito decolonial do filme, presente principalmente no protagonismo dado aos subalternos da conquista da América do Norte. São eles o serviçal cozinheiro, chamado Cookie (John Magaro), e o estrangeiro, chamado King-Lu (Orion Lee), numa terra de estrangeiros!

First cow
O estrangeiro e o subalterno no lugar de protagonismo.

Há muito de feminino na aproximação pacífica dos dois homens, que nunca se vêem como inimigos, e praticam o que hoje o feminismo chama de sororidade. Os outros homens à sua volta se situam no restrito plano das ações. Apenas reagem aos estímulos da natureza, vivendo o imediato, com violência e sem planejamento. Por outro lado, Cookie e King-Lee conduzem-se de maneira atenta e absolutamente ajustada à sua realidade. Colocam-se todo o tempo no terreno das ideias. Definem objetivos a curto, médio e longo prazo. Planejam suas ações pesando prós e contras e monitorando as ações dos outros à sua volta. Assim, encaixam-se em todas as perspectivas teóricas do que vem a ser protagonismo.

Segundo Pitanga, First Cow é a concretização cinematográfica daquilo que denominou “protagonismo de novas narrativas”. Esse protagonismo se concretiza por meio de décadas e décadas de contribuição dos movimentos sociais e das ciências humanas. Pego carona nessa ideia poderosa: afirmo que essa concretização, se afetar corações e mentes, é capaz de dar a meia volta e retornar, transformada, ao lugar de onde veio: o mundo das ideias e dos acontecimentos.

As transformações de pensamento e de mundo são lentas

Esse movimento nos ajuda a capturar com a mão o que é o feminino como uma prática de vida. E, mais ainda, nos ajuda a compreender a força feminina de vida como algo capaz de atingir e ser conquistado não apenas pelas mulheres, mas também pelos homens. E isso apenas os melhora, os torna mais plenos, mais conectados ao fluxo da vida, em vez de desejar que a vida se ajuste a alguma percepção tacanha e fálica de mundo.

Kelly Reichardt
Esta é Kelly Reichardt

Milhares de anos foram necessários para que se pudesse construir o feminino como racionalidade, e materializar isso na forma de fazer Cinema. Entretanto, grandes transformações tomam tempo…. Por exemplo, apenas cem anos após a morte de Bach é que se descobriu o que ele tinha inventado. Mas o que é um século diante de uma racionalidade que existirá para sempre?

Por ser uma obra extraordinária, First Cow consolidou uma possibilidade de fazer Arte, de pensar e de viver que jamais se fechará, porque, depois que aprendemos algo, nunca mais voltaremos ao estado de ignorância.

First Cow está disponível na plataforma Mubi.

Agradeço ao pianista e professor Jones Martins por seus preciosos ensinamentos durante a escrita deste texto.


Ficha Técnica
First Cow (2019) – Estados Unidos
Direção: Kelly Reichardt
Roteiro: Kelly Reichardt, Jonathan Raymond
Edição: Kelly Reichardt
Fotografia: Christopher Blauvelt
Design de Produção: Anthony Gasparro
Trilha Sonora: William Tyler
Elenco: John Magaro, Orion Lee, Toby Jones, Lily Gladstone

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