As Golpistas
Última atualização: 11/11/2020
Resisti por um tempo antes de assistir a As Golpistas, atualmente no catálogo da Amazon Prime. Principalmente pelas cenas de seminudez feminina, previamente anunciadas pelo seu trailer. Tendo o filme sido dirigido por uma mulher (Lorene Scafaria), seria difícil presenciar na tela a já tão batida nudez feminina completamente inútil para sustentar argumentos ou desenvolver tramas. Via de regra, ela não passa de um expediente barato e machista para atrair público.
Mas no caso de As Golpistas, a meu ver, era inevitável exibir mulheres seminuas buscando capitalizar suas vidas às custas de executivos de Wall Street, dispostos a gastar fortunas em casas noturnas chiques de Nova York. É de mulheres desse mundo que o filme trata. Logo, pareceria hipocrisia elas não aparecerem assim eventualmente.
As Golpistas não é um filme machista
Dois outros motivos justificam a nudez feminina em As Golpistas. O primeiro é que exibir-se sensualmente seminua num palco para o deleite masculino é um dado importante na composição das personagens centrais – e periféricas – do filme. Por exemplo, a personagem Ramona (Jennifer Lopez) exerce influência e conquista o respeito das outras. Mesmo sendo mais velha, mantém-se em plena atividade por seus atributos físicos e artísticos muito superiores aos das colegas.
Tais atributos são tomados por Lorene Scafaria como verdadeiros talentos pessoais. Portanto, são muito mais do que apenas capacidades femininas de sedução e sensualização. É sutil e tocante a cena em que Ramona ensina a protagonista Dorothy/Destiny (Constance Wu) a se exibir fazendo acrobacias sensuais numa barra de pole dance ao som de música clássica. É como se estivéssemos diante de uma exibição de balé de alto nível, o que eleva esteticamente o valor social e a respeitabilidade de uma prática artística cujo imaginário a atrela a casas noturnas e de prostituição.
O segundo motivo é o fato de, em algum momento, as strippers deixarem de exercer essa profissão. Precisamos estabelecer critérios de comparação entre o que elas faziam antes e o que passam a fazer depois. Essa mudança não apenas é fundamental para a progressão do filme. Ela evidencia também que as profissionais das casas noturnas não fazem striptease e dançam para excitar homens apenas por prazer, como alguns homens pensam (e alguns já me declararam isso). De fato, o fazem porque provavelmente não têm e/ou não conhecem outro meio de vida.
As Golpistas não é um filme feminista, tampouco
As Golpistas é um filme sobre fatos relacionados a como a crise financeira de 2007-2008 obrigou a mudanças no pensamento e no comportamento de pessoas que giravam em torno dos operadores financeiros de Wall Street. Portanto, pode-se dizer que o filme se estrutura basicamente entre um antes e um depois. Como as mulheres focalizadas pelo filme se relacionavam com os homens antes da crise, e como as soluções encontradas por elas para continuar sobrevivendo em tempos de vacas magras afetaram, ou não, esse relacionamento.
É importante dizer: apenas o relacionamento delas com os homens é que, ao longo do filme, sofre mudanças, pelo menos aparentes. A maneira como elas se relacionam entre si permanece inalterada. Acho interessante pontuar que As Golpistas chegou aos cinemas ao mesmo tempo em que O Irlandês, filme sobre relacionamentos entre homens criminosos, chegou à Netflix.
Em O Irlandês, os homens passam quase todo o tempo trabalhando juntos e até eventualmente desenvolvem alguma amizade. Mas sabem que poderão matar uns aos outros se as circunstâncias impuserem essa necessidade. Já em As Golpistas, a sororidade entre as mulheres é constatada nos tempos de penúria e também nos de abastança, que elas optam por usufruir juntas em todos os momentos. Até quando a inevitável traição acontece, o sentimento de que em algum momento futuro elas podem se reconciliar permanece. Esse companheirismo testemunha contra a velha máxima machista, tantas vezes vista na ficção, de que as mulheres competem entre si.
Porém, mesmo que a sororidade esteja presente em todos os momentos do filme, As Golpistas não é um filme feminista. Por mais que, entre si, as personagens reforcem elos de amizade genuína e cuidado mútuo, presentes mesmo quando os planos de fortuna vão por água abaixo. Mas é na forma como se relacionam com os homens que se percebe que as personagens não desenvolveram uma percepção sobre os alicerces machistas de seu mundo.
O que é a independência para o feminismo
As Golpistas se estrutura narrativamente entre um primeiro segmento, em que as personagens femininas são exploradas por homens, e um segundo, em que elas passam a explorá-los. A protagonista Dorothy/Destiny inicia o filme tendo de, após o expediente, pagar uma parte de seu ganho a pelo menos três diferentes proxenetas. Chega a conhecer um homem com quem tem uma filha, mas a relação não dá certo. Seu desejo, manifestado mais de uma vez, era o de ser livre, sem depender de e nem dar satisfações a ninguém – melhor dizendo, a nenhum homem.
A aproximação com Ramona impulsiona a vida de Dorothy/Destiny, para, primeiro, continuar a servir aos homens de forma mais competente e amealhar mais dinheiro. Ainda assim, tendo de fornecer o percentual dos proxenetas. O nascimento da filha a afastou de Ramona, mas elas logo se encontram de novo. A partir daí, o trabalho ganha uma nova dimensão, com a conquista da autonomia profissional proporcionada pela limpeza da conta bancária de homens drogados e tolos o suficiente para acreditar que as mulheres gostosas que aparecem de repente no bar estão a fim de fazer sexo com eles.
O fato de as personagens apenas terem mudado de lugar na relação de exploração significa que elas não alteraram sua percepção de um mundo composto de exploradores e explorados. Podem ter se tornado ricas o suficiente para consumir produtos de luxo, mas não se empoderaram de fato, nem se tornaram independentes. Continuaram, sim, a depender de homens para obterem dinheiro e conforto. A diferença é que agora o fazem à revelia deles. Uma breve fala de Dorothy/Destiny ao fim do filme mostra que ela, após tantas aventuras e desventuras, ainda atrela eventuais transformações em sua vida à presença de algum homem nela.
As Golpistas não pretendeu em qualquer momento vender a ideia de que suas personagens estavam conquistando alguma consciência de gênero roubando homens e justificando suas ações alegando que eles também roubaram muita gente. Longe disso: uma das ideias que o público pode inferir vendo o filme é a de que a verdadeira transformação existencial rumo ao empoderamento requer que as pessoas percebam que a grande transformação – a grande liberdade – passaria por, antes de tudo, compreender, questionar e romper com a estrutura de exploração que se mantém mesmo quando são elas a explorar os outros.
Jennifer Lopez é muito maior do que o que pensam dela
A capacidade de despertar questionamentos sobre o que é a verdadeira libertação do machismo já torna As Golpistas um filme relevante, mas assistir a ele se torna uma tarefa de fato impactante pela presença de Jennifer Lopez. Interpretando Ramona, Lopez se firma como grande e carismática estrela. Sua presença ofusca a de qualquer outra atriz na tela, inclusive pelo fato de que seus 50 anos de idade não se denunciam em sua ótima forma física e em seu rosto, que não revela procedimentos estéticos. A exposição de sua imagem seminua, longe de objetificar a personagem, como eu temia, acaba por ser parte do seu complexo processo de construção.
Mas também a seminudez de Lopez no filme a revela como uma grande e corajosa atriz, capaz de um feito que melhora exponencialmente o filme: o de abraçar e incorporar o próprio mito, que é o de latina gostosa e desfrutável. Ela torna esse mito parte da construção de sua personagem. A sensualidade que lhe atribuem pode até não fazer parte de seu cotidiano pessoal – e é provável que não faça mesmo. Mas é interessante ver como Jennifer Lopez engloba inteligentemente o estereótipo que carrega. Usa-o agentivamente para constituir e definir o modo de ação da personagem, não só para convencer e arregimentar as companheiras de golpes, mas também para ser a pessoa sob cujo manto (em outra bela cena) elas podem se abrigar nas horas ruins.
O trabalho de Jennifer Lopez é corajoso e transgressor porque é sempre um risco uma atriz mostrar na tela uma faceta sensual se é essa a imagem que o público lhe atribui, porque ela corre o risco de permanecer para sempre nesse lugar. É mais perigoso ainda no caso de Jennifer Lopez, que, no mercado machista do Cinema, divide espaço com atrizes muito mais jovens, que ainda têm tempo para se desconstruírem. A bem mais jovem Scarlett Johansson realizou feito semelhante em Como não perder essa mulher (2013) com sua personagem jovem, malhada e bobinha, não muito longe da figura bombshell loira que marcou seu início de carreira. A qualidade de sua interpretação no filme ajudou a desconstruir essa imagem para que hoje a vejamos como atriz respeitada, de trabalhos relevantes.
Porém, a reconfiguração do próprio mito operada por Jennifer Lopez na composição de Ramona não desconstrói sua imagem. Pelo contrário, reforça-a, agregando novos elementos significativos e nos propondo a aceitação de que mulheres bonitas e sexies também podem ser talentosas, inteligentes e bem-sucedidas. O trabalho em As Golpistas coloca Lopez definitivamente no nível das grandes atrizes estadunidenses. E, nesta obra, considerando a forma como ela escolheu compor Ramona, a torna a grande injustiçada, junto com Lupita N’yongo, por ambas terem sido excluídas nas indicações aos Oscares de Atriz Coadjuvante e Atriz, respectivamente.
Um prêmio da Academia dado a Jennifer Lopez por sua assumida e ousada atuação seria mais do que merecido: seria o reconhecimento por um trabalho que certamente inspirará muitas atrizes no futuro.
Direção: Lorene Scafaria
Roteiro: Lorene Scafaria
Edição: Kayla Emter
Fotografia: Todd Banhazi
Design de Produção: Jane Musky
Trilha Sonora: coletânea
Elenco: Jennifer Lopez, Constance Wu, Julia Stiles, Mette Towley, Vanessa Aspillaga, Trace Lysette & Wai Ching Ho