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Rede de Ódio

Última atualização: 08/11/2020

Rede de Ódio, que estreou em 29 de julho na Netflix brasileira, articula o problema das fake fews com o discurso do ódio nas redes sociais. Isso poderia sugerir que muitas discussões virtuais seriam realizadas a partir de sua narrativa complexa e envolvente. Contudo, mesmo em tempos de (ainda algum) isolamento social, não encontrei sobre o filme discussões para além das críticas habituais. Pelo contrário: Rede de Ódio rapidamente desapareceu da lista das dez obras mais acessadas na plataforma de streaming mais popular do Brasil.

Especulo sobre as razões disso. Será que os brasileiros não estão interessados na importante e oportuna discussão sobre a epidemia (pandemia, se formos rigorosos na observação) das fake news? Não estão preocupados com as manifestações de um ódio calunioso e destruidor de reputações, capaz até de eleger e derrubar governos? Ou será que as mentiras, raivosas ou não, veiculadas pelas redes sociais estão tão disseminadas em nossa vida que já se naturalizaram?

Essa pergunta precisa em algum momento ser feita – e respondida -, mas interessa-me neste texto desenhar a estrutura temática-estética de um filme que por si é fascinante e merece estar no centro do debate cinematográfico de 2020.

Poloneses sempre merecem ser vistos

Há também outra razão para que Rede de Ódio seja notado. O cinema polonês contemporâneo goza de grande prestígio mundial. Não raro, filmes poloneses são finalistas em candidaturas a prêmios internacionais, como o Oscar, por exemplo. O diretor Jana Komasy emplacou seu filme anterior, Corpus Christi, entre os finalistas ao Oscar este ano.

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Seu trabalho mais recente é coeso e impactante. Os 135 minutos de projeção, na contramão da tendência geral à realização de filmes mais curtos e enxutos, são acompanhados com grande interesse e envolvimento. Prova disso é que não percebemos de imediato essa longa duração.

A duração mais longa do filme se justifica por sua proposta temática, que realmente toma tempo. Ao acompanhar a rápida ascensão do jovem Tomasz Giemza da indigência social ao topo da elite polonesa, Rede de Ódio articula uma tese de fundo, dividida em duas partes, sobre as quais a narrativa coerentemente se constrói. A tese do filme, bem adequada ao espírito do nosso tempo, é a da medicalização das pessoas que apresentam desvios morais e praticam comportamentos criminosos, e por isso seus efeitos seriam atribuídos tão-somente a elas.

Na perspectiva do filme, a primeira parte dessa tese é a percepção de que a invenção e a disseminação de notícias falsas e ofensivas acerca de personalidades públicas são operadas por pessoas que carregam alguma patologia de personalidade. São doentes, portanto. Ambicioso, autocentrado, ressentido e inescrupuloso, Tomasz não paralisa diante de nenhum obstáculo à consecução de seus objetivos. Tampouco se mostra capaz de sofrer remorso por seus crimes. Suas características de caráter têm sido comumente reunidas sob a rubrica da psicopatia – o nome técnico é Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS).

Biologia e sociedade se mesclam para estruturar a trama

O entendimento da psicopatia como um transtorno inato e individual abre espaço para que busquemos causas apenas pessoais para as ações de Tomasz. Tais causas, portanto, não se relacionariam a interesses políticos e jogos de poder e dinheiro. Essa ideia é articulada à apresentação do entorno microssocial de Tomasz. O protagonista de Rede de Ódio nasceu em família pobre e foi ajudado academicamente pelos donos ricos da propriedade onde cresceu. O rapaz é maltratado por seus benfeitores, que, generosos em público mas mesquinhos na vida privada, mal o toleram e desprezam de maneira debochada sua falta de refinamento e traquejo social. Isso é sugerido como justificativa para seu comportamento criminoso.

As ações de alguns personagens em torno de Tomasz conectam-se de maneira orgânica à primeira parte da tese do filme para constituir a segunda: tanto a genética quanto a cultura seriam os fundamentos para o comportamento criminoso. De certa forma, a segunda parte da tese suaviza a primeira e faz com que o filme escape de julgamentos mais rigorosos acerca dos conceitos sobre os quais se constrói.

Na Polônia, como aqui, a mentira e o ódio a serviço do poder

As duas partes da tese de Rede de Ódio convergem para um argumento: apenas as pessoas que cometem os crimes que vemos Tomasz cometer seriam responsabilizadas por eles. A construção social mais ampla em que elas encontram meios de ação sairia impune de qualquer julgamento. O problema é que Tomasz não praticaria seus crimes se não tivesse sido favorecido e incentivado nos ambientes onde atua. Por exemplo, a agência onde consegue emprego serve de fachada para um verdadeiro “gabinete do ódio“, financiado por gente poderosa e influente no jogo político polonês. Além disso, Tomasz também tem contato com pessoas, que, assim como ele, são psiquicamente perturbadas e sedentas de extravasar seus recalques por meio de ações violentas.

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Mas esses dois contextos são tratados no filme de forma secundária; são apenas instrumentos para que Tomasz leve a cabo seu projeto de ascensão social usando absolutamente tudo o que houver ao seu alcance para isso. E, por ser considerado um doente e ter sido humilhado na juventude, pode ser que ele também seja inocentado em um eventual julgamento. Se for assim, a quem culparemos pelas mazelas e tragédias que sua exploração deliberada do preconceito e da intolerância provocaram?

Tomasz é apresentado no filme como o verdadeiro protagonista, articulador e grande artífice de tudo o que acontece. São dele os planejamentos das ações e as provocações e justificativas para a tessitura da narrativa. Os demais personagens apenas sofrem, sem reagir, os efeitos de seus atos. De início um aprendiz dos ambientes em que se insere, aos poucos Tomasz vai se masterizando na dominação dos jogos – metafóricos e literais – de poder que lhe permitem passar hierarquicamente à frente de outras pessoas, usar com facilidade quem pode lhe ser útil, conquistar os lugares que almeja e se vingar dos que o feriram.

Rede de Ódio é sobre a mentira – e também sobre a verdade

Nesse pormenor, a atuação brilhante de Maciej Musialowski, uma das grandes do ano, permite que reconheçamos em Rede de Ódio um filme sobre mentiras, mas também sobre uma grande verdade: a verdade do personagem. Seu ódio profundo e mortal sutilmente escapa de vez em quando sob uma expressão facial e corporal altamente controlada. O ódio que Tomasz produz é apenas o extravasamento do que já está dentro dele. Mas esse ódio se materializa apenas porque há condições de possibilidades, históricas e sociais, para que ele exerça controle absoluto sobre as forças malignas que calculadamente desencadeia.

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Uma dessas condições é a possibilidade contemporânea de trânsito e manipulação nos dois mundos que hoje são o suporte das práticas de vida: o mundo, digamos, material, e o mundo virtual. O roteirista Mateusz Pacewicz reconhece, muito acertadamente, esses mundos como tendo igual estatuto. E o diretor Jana Komasy concretiza essa ideia pelo menos duas vezes: no (não mais inédito) recurso da presença das mensagens escritas na tela quando o personagem se comunica com alguém pela via do aplicativo de mensagens, e na interessante solução usada para mesclar o virtual e real de uma maneira tão imbricada, a ponto de tornar possíveis experiências sensoriais que atravessem ambos os mundos.

Rede de Ódio: boa ficção numa era em que competir com a realidade está muito difícil

A mesclagem entre real e virtual, paralela à articulação entre as dimensões biológicas e culturais das experiências de Tomasz, sustenta um dos elementos que compõem a diegese do filme: a pobreza afetiva e a absoluta falta de qualquer verdade nas relações entre Tomasz e os demais personagens. Essa diegese se torna mais impactante em sua não preocupação com os outros personagens e os efeitos de suas ações sobre alguns deles. A construção diegética de Rede de Ódio o transforma num filme em que a verdade se torna desimportante. Isso pode produzir no espectador um incômodo e até uma angústia. Tanto na constatação das consequências das ações de Tomasz, quanto na forte impressão de que ele bem pode sair impune e bem sucedido, ao fim e ao cabo.

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A justa e legítima provocação desse incômodo bem pode ter sido a intenção dos realizadores do filme, o que abona a condição de fundo, ao longo da obra, dos aspectos mais amplos da sociedade polonesa e europeia, e mantém sua relevância artística e intelectual.

Por isso, embora se possa discordar da tese do filme (eu particularmente discordo), não se pode negar a maneira refinada e minuciosa com que a trama das causas e efeitos dos atos de Tomasz vai sendo tecida. Também não se pode deixar de reconhecer que os conteúdos do filme são de precioso valor para um diálogo que ajude as pessoas a compreender a urgência de combater as práticas nefastas que testemunhamos na tela. Rede de Ódio, por suas virtudes como cinema e como documento do nosso tempo, é um dos filmes mais importantes e necessários do ano. Assistir a ele é parte da busca de como sobreviveremos ao ano de 2020 sem mais outras dores e perdas irreparáveis além daquelas que já tivemos.


Ficha Técnica
Sala samobójców. Hejter (2020) – Polônia
Direção: Jan Komasa
Roteiro: Mateusz Pacewicz
Edição: Aleksandra Gowin
Fotografia: Radek Ladczuk
Design de Produção: Marcel Slawinski
Trilha Sonora: Michal Jacaszek
Elenco: Maciej Musiałowski, Vanessa Aleksander, Danuta Stenka, Agata Kulesza & Jacek Koman

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