Não Não Olhe destacada

Não! Não Olhe!

Última atualização: 25/08/2022

Daniel Kaluuya está de volta aos filmes de Jordan Peele em Não! Não Olhe! Nos últimos anos Peele tem sido aquele diretor que move o público em direção aos filmes apenas por eles levarem seu nome. Seu estilo particular de roteiro e direção nos presenteou com Corra! Nós, ‘trazendo de volta’ o chamado terror social às telas.

Assim como suas duas produções anteriores há em Não! Não Olhe! elementos sociais e culturais estadunidenses em discussão. Entretanto, eles são mais uma característica do filme como um todo do que o ponto principal. O gatilho para que a história se desenvolva é a morte de Otis Haywood (Keith Davis) ao ser atingido por uma moeda que cai em alta velocidade do céu, o alvejando.

Keith David nope

A partir disso, a vida da família Haywood muda. OJ (Kaluuya) e Emerald (Keke Palmer) eram bons amigos, mas desde a morte do pai o homem está mais distante devido as preocupações com as finanças. Sua irmã, ao contrário, parece ter decidido viver a vida para além do rancho e dos negócios da família. Com o intuito de se estabilizar financeiramente, o par se envolve com Ricky ‘Jupe’ Park (Steven Yeun), Antlers Holst (Michael Wincott) e Angel Torres (Brandon Perea).

Faroeste surrealista

Ao ver o trailer de Não! Não Olhe!, a primeira impressão que temos é de que se trata de uma ficção científica sobre OVNIs. Entretanto, o que não fica claro são os elementos de faroeste presentes na película. Os Haywood são uma família tradicional que vive em um rancho na região da Califórnia e treina cavalos para serem usados em filmes de Hollywood. Tanto seu pai quanto OJ são dois caubóis modernos e entendem os animais ao ponto deles serem quase uma extensão de seus corpos e personalidades. Eles “falam” a mesma língua dos animais (guardem isso, pois será importante logo ali na frente).

Steven yeun nope

 

Do outro lado do rancho há um parque temático, dirigido por Ricky ‘Jupe’, um ex-ator mirim (interpretado na infância por Jacob Kim) que, durante a infância. testemunhou momentos de terror em sua profissão: Gordy, um chimpanzé, entrou em surto e atacou o elenco da série em que atuava. O menino saiu ileso fisicamente, mas com memórias vívidas do acidente. Assim, ‘Jupe’ se torna um adulto que mantém com os animais de seu parque a relação comercial que o estúdio cinematográfico mantinha com o chimpanzé.

Ao narrar a tentativa de sobrevivência de uma família, em meio ao deserto, sendo atacada por algo que vem do céu, Peele transcreve para a contemporaneidade a atmosfera western de alguém que luta para manter invasores indesejados distantes de sua propriedade.

A partir deste ponto o texto contém spoilers

Daniel kaluuya nope

Resistência negra

Em sua primeira aparição, Emerald (Palmer) conta que sua descendência vem de uma tradicional família de domadores de cavalos. Ao narrar a origem de seus antepassados, ela cita o jóquei negro da captura feita por Eadweard J. Muybridge em The Horse in Motion, uma sequencia de “eletrofotografias” representando o movimento de um cavalo.

O que importa após esta apresentação é entender que. no contexto da obra, o argumento dos Haywood aponta para o apagamento de uma personagem importante para a história do nascimento do cinema. Por exemplo, em um diálogo entre Ricky e Emerald, ela cita ser fã de um garoto negro, companheiro de elenco de Ricky, e questiona o que aconteceu com ele, recebendo uma resposta evasiva que não indica que o ator teve algum reconhecimento após o fim da série.

Posso dar também o exemplo de como OJ se sente desconfortável no set de gravação. Ele e sua irmã estão ali visivelmente deslocados. São coadjuvantes daquela produção, assim como os cavalos que levaram para a produção da película. Nesse sentido, após um acidente com o cavalo, ao ter seu trabalho dispensado e substituído pelo efeito digital, podemos traçar um paralelo com momentos da história do cinema que personagens racializados são interpretados por atores brancos (por exemplo: blackfacewhitewashing).

Assim como Cherryl Dunnie, em The Watermelon Woman, Jordan oferece ao jóquei negro desconhecido um nome e um legado em Hollywood, da mesma maneira que coloca uma família rancheira negra no centro de uma produção de terror e ficção científica que abraça o gênero do faroeste, tradicional retrato da cultura americana, no qual negros e indígenas apareciam majoritariamente em cena como coadjuvantes, ou de maneira vilanesca estereotipada, isso quando apareciam.

Keke Palmer nope

Não olhe, não ouça e não fale

O que não é visto não é lembrado, bem como o que não é sabido. Não! se inicia com uma citação bíblica da mesma maneira que Nós: 

Lançarei sobre ti imundicias, tratar-te-ei com desprezo e te porei por espetáculo. (Naum 3:6)

Em princípio, o uso da citação, assim como o personagem Gordy me pareceram deslocados da proposta do filme que era, inicialmente, falar sobre um ataque alienígena. Entretanto, a medida que a narrativa foi se desenvolvendo, ambos tópicos se encaixaram na trama.

O Outro

Ao meu ver, Peele faz um movimento ousado ao usar como elemento de flashback uma sitcom dos anos 90, retratando uma tradicional família americana, que tem como coadjuvante um macaco e um garoto coreano. Fica explícito no contexto a relação da história-memória de Ricky com o tratamento racista e xenofóbico visto por décadas no cinema e TV na construção de personagens e narrativas.

Em Horror Noire, especificamente no capítulo sobre os anos 1950/60 (p. 169-202), a autora, Robin R. Means Coleman aborda a ausência de pessoas negras no cinema de horror. Ela relata que neste ciclo do terror os negros ou eram coadjuvantes com aparições breves, geralmente atrelados à ideias de subalternidade, selvageria e perigo. Obviamente, há exceções e personagens negros podem ter um maior tempo de aparição em tela, entretanto há sempre uma relação hierárquica em que o branco está vinculado à superioridade intelectual e moral.

Não não olhe

A pata do macaco

Pois bem, percebemos aqui que, assim como o homem no cavalo e os negros, por muito tempo no cinema, Gordy é um Outro. Em Não! Não Olhe!, ele pode representar o selvagem domado até que por um gatilho sonoro se converte em uma besta sanguinária. O chimpanzé ataca seus colegas de palco com tanta selvageria quanto Deus quando atacou Nínive, na citação do profeta Naum. Ele massacra os que capitalizaram seu corpo espetacularizando sua morte da mesma forma que a empresa espetacularizou sua vida: usando o palco como local da carnificina.

Observo algo semelhante em Jean Jacket, a criatura alada que ataca os moradores de Agua Dulce. Inclusive, a abdução-absorção de Ricky e seus familiares, funcionários e convidados, remete a um segundo ato de expurgo de Jacket contra os que ousam espetacularizá-la. Antes deste ataque, já tomamos conhecimento de como “Jupe” mantém sua vida, tirando proveito da tragédia acontecida com o elenco de Gordy’s Home em vendas para fãs da história mórbidas por altos valores. Enquanto um teme e respeita Jean Jacket, o outro o enxerga como um potencial meio de recuperar a fama.

O cumprimento da pata do macaco entre Gordy e Ricky amaldiçoou o jovem da mesma forma que os White em A Pata do Macaco, de William Wymark Jacobs.

Daniel Kaluuya keke Palmer brando perea nope

Tomada Oprah 

Apesar de Ricky buscar o lucro em sua prática, ele não é o único. Emerald e OJ, junto ao técnico de eletrônica Angel, também querem registrar a prova a existência de alienígenas. Eles chama esse futuro take de ‘A Tomada Oprah’, pois ela será responsável pela fama, pelo lucro e pela manutenção do legado Haywood.

“Jupe” também tenta fazer o mesmo, tanto que é capturado pela Jean Jacket ao tentar fazer um dos cavalos vendidos por OJ ser capturado pelo que ele entende ser uma nave espacial com “espectadores”. Além disso, Angel também se interessa na comprovação da existência de OVNIs por saber que isso o fará famoso. E, de maneira semelhante, Antlers, o diretor de fotografia que tem obsessão com a natureza dos animais selvagens.

Atlers, particularmente, está disposto a colocar sua vida em risco para obter a tomada perfeita. Equivocadamente, em um primeiro momento, o vemos como um Dom Quixote, melancólico e isolado em seus materiais, vendo repetidamente tomadas de ataques entre predadores e presas. Mas, ao decidir apoiar os Haywood e partir em direção ao topo da colina, entendemos que ele é, na verdade, o capitão Ahab, obcecado com a tomada perfeita.

No fim, o que todas as personagens de Não! Não Olhe! buscam é alguma perspectiva de se sobrepor ao grande vilão das suas vidas: a indústria do espetáculo. E OJ consegue manter o legado familiar, usando de tudo que aprendeu com o pai para entender, domar e dizimar a criatura que o perseguiu. A última tomada é a consagração dele como um herói.


Ficha Técnica
nope jordan peele poster
Nope (2022) – Estados Unidos
Direção: Jordan Peele
Roteiro: Jordan Peele
Edição: Nicholas Monsour
Fotografia: Hoyte Van Hoytema
Design de Produção: Tom Hammock
Trilha Sonora: Michael Abels
Elenco: Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Brandon Perea, Michael Wincott, Steven Yeun, Keith David,

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3 comentários em “Não! Não Olhe!

  1. Acabei de assistir o filme; vou assistir ele de novo daqui a alguns dias; nesse instante ele é o meu segundo filme favorito do Jordan Peele (o primeiro continua sendo Corra!).

    O texto é muito legal, chamou a minha atenção para coisas, especialmente as relações entre espetáculo e exploração de espetáculo que não ficaram no centro da minha primeira assistida do filme; eu não tinha pensado nada sobre isso, e tudo isso faz sentido e parece que está dentro da proposta inicial do diretor.

    Tem tanta, mas tanta coisa dentro desse filme! Nisso, ele me parece um pouco os clássicos do Quentin Tarantino, especialmente os dois volumes do Kill Bill, em que a gente precisava aprender não só sobre um filme, mas sobre todo um gênero que a gente geralmente não sabe que existe, e só vai saber por causa da coisa estranha que o Tarantino (e pelo menos nesse caso, o Peele) colocou no filme.

    Valeu muito pelo artigo

    1. Oi, Daniel.
      Ele também é meu segundo filme preferido do Peele, até agora, e também tenho pensado bem nele depois da primeira assistida. Concordo contigo que é um filme que instiga a se conhecer mais sobre o gênero, principalmente depois que pensei em como ele se liga a produções de Spielberg e Shyamalan, além de inúmeros filmes de ficção científica com criaturas Gigantes, alienígenas ou não.

      Pode ter certeza que a cada revisão mais ligações, referências e simbologia serão entendidas e descobertas, até mesmo além do que o autor/diretor pretendia.

      Abreijos e volte sempre aqui.

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