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‘Rewind & Play’ e outras histórias | Olhar de Cinema

Última atualização: 05/06/2022

Segundo dia de Olhar de Cinema e a maratona de filmes acabou convergindo para as maneiras de se contar histórias no cinema. Passei por Rewind & Play, o registro da viagem de um astro pela França, caminhei pelas ruas do Haiti em meio a realidades atuais (por vezes semelhantes às realidades de alguns dos brasileiros) e a futuros imaginados e revivi sentimentos da minha trajetória ao dar a mão para Cherryl Dunye e coabitar o ambiente de trabalho ao qual pertenci por anos.

Rewind & Play: percebendo o desconforto nunca exposto, em imagens desaparecidas

Em 1969, o jazzista Thelonious Monk fez uma visita à “Cidade Luz” para se apresentar. Por isso, o pianista foi convidado a gravar um programa para a TV francesa, com o objetivo de falar sobre sua vida e produção criativa. Tal registro esteve desaparecido. Entretanto, foi resgatado por Alain Gomis, diretor Franco senegalês.

Rewind & play olhar de cinema

O arquivo contém imagens brutas das gravações desse programa que, pelas mãos de Gomis, transpõem a linha que o limitaria apenas a um registro histórico. Assim sendo, vamos para um ambiente de bastidores incômodo e opressivo, no qual o desconforto do musicista pode ser observado em seus gestos e posturas.

Quem domina as palavras detém o poder

Monk transpira excessivamente e desloca seu olhar, observando sem entender pessoas que discutem em um idioma que desconhece. O que o entrevistador diz a ele não corresponde ao que ele diz ao público, pois a tradução cria um texto sobre outro texto. A repetição de perguntas e respostas é um jogo para constranger, modelar e remodelar uma narrativa na qual as ações estão nas verdades que o entrevistador pretende contar, mas não no que interessa Theloniousa relatar.

Antes mesmo de repassar as questões ao entrevistado, o francês já decidiu qual caminho pretende tomar com suas perguntas. Ainda assim, no documento visual há apenas um palhaço no picadeiro e certamente ele não é Thelonious.

Rewind & Play não é um simples registro histórico e sim um movimento de Gomis compartilhando conosco os incômodos envolvidos naquela ocasião.  Observem os sons, sejam musicais ou externos, e como um artista usa de sua arte para se desconectar da incômoda realidade. Concordo com Lorenna Rocha,  do camarescura – estudos de cinema e audiovisual que, em uma  conversa após a sessão, apontou semelhanças com Summer of Soul, documentário de 2021, sendo para mim a primordial delas interferir o mínimo no material encontrado e utilizado na criação dos documentários, permitindo que eles existam e falem por si só.

Freda: O Haiti pode ser aqui

Freda olhar de cinema

O segundo filme do dia foi a produção da cantora, atriz e diretora Gessica Généus. A haitiana narra a história de Freda (Néhémie Batien), protagonista que dá título ao filme, uma jovem que vive na periferia haitiana. Até agora, talvez este seja o filme estrangeiro que mais se aproxima de uma relação com a vida das juventudes das camadas mais pobres do Brasil. Freda mora em Porto Príncipe e, junto de seus amigos, pensa na construção de um futuro mais ameno. Com o crescimento da violência e, como consequência, da precariedade da vida, esses jovem buscam alternativas a partir do entendimento de seu passado.

Entretanto, o filme não se atém apenas às tentativas de imaginar e vivenciar  um futuro pensado pela juventude. Por ter seu centro na casa e mercearia da mãe da protagonista, todas as tentativas de um futuro melhor, a partir do desejo de cada um daquelas pessoas, está na mesa. Do mesmo modo que Freda crê na possibilidade de mudança por meio da educação, sua irmã projeta sua liberdade em relacionamentos amorosos. Já sua mãe se agarra à religião como meio de expurgar seus pecados passados e percorrer por uma nova estrada.

As relações que existem entre estas mulheres são desdobramentos de um país pulsando por revoluções que varram os problemas. Um deslocamento atemporal pelas consequências de anos de colonialismo.

Esta Casa: a inexistência não impossibilita a criação

Esta casa olhar de cinema

Esta Casa, da canadense Miryam Charles, também trata do Haiti. Porém, em outro ponto de existência. Com a morte brutal e misteriosa de sua prima em 2008, a diretora investiga as relações entre Haiti, Canadá e Estados Unidos, na vida de sua família, com o propósito de tentar criar futuros diferentes para criança morta e sua mãe. Por isso, o exercício de Miryam passa pelo teatro, performance e uma beleza plástica que abriga o espectador em um certo saudosismo.

Mas não se enganem, pois Esta Casa é uma pancada que atordoa. A triangulação dos deslocamentos entre as nações em diáspora sobrepõe, une e mistura questionamentos que tangem a vida e a morte, seja de Terra, seja de outros corpos movidos de sua origem para ambientes desconhecidos.

Mulher Melancia: Cheryl explora uma maneira da história contar sobre ela

Watermelon woman olhar de cinema

Cheryl Dunye se destacou em meio ao New Queer Cinema e foi além. Se colocou no centro de The Watermelon Woman, seu primeiro filme, pensando em passados,  presentes e futuros possíveis para se falar de mulheres negras.

À medida que a diretora-atriz-personagem se embrenha na vida da atriz nomeada Mulher Melancia pelo apagamento racial, a vida destas duas negras e lésbicas se confundem em um filme que propositalmente nos confunde se apresentando ora como ficção, ora como documentário.

Provavelmente, se mais arquivos sobre a Mulher Melancia fossem apresentados na produção, a veríamos em algum momento na mesma posição que Monk em Rewind & Play, sendo submetida às vontades externas e fugindo daquelas almas sebosas que a impediam de existir por meio de sua arte. Dunye nos conta a história pensada e criada de um passado possível, a partir de uma obsessão, uma jornada de auto conhecimento.

Isso me fez (ainda faz e, pelo visto, fará por dias) pensar sobre como esses quatro títulos preenchem e criam lacunas entre realidade,  ficção,  documento, sentimento, ancestralidade, consciência política e mais e mais tópicos que eu poderia listar infinitamente aqui.

As produções até aqui se distinguem por se passarem em espaços e tempos diferentes, resgatando situações passadas, construindo futuros e passados inesperados, possíveis e impossíveis, mas que se tornam reais pela expressão artística destes e destas realizadoras. Em outras palavras, refletem o exercício de como podemos contar histórias e de como elas podem nos contar.

Olhar de Cinema Festival Internacional de Curitiba acontece presencialmente entre os dias 1° e 9 de junho, em Curitiba. Entretanto, acontecerão também sessões online, entre os dias 07/06 (00h00) e 09/06 (23h59) no site do festival. Ingressos para as sessões virtuais por R$ 6,00.

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