Blonde
Última atualização: 14/03/2023
A misoginia é uma forma de cognição
Assistindo a Blonde, filme de Andrew Dominik “ganhador” do Framboesa de Ouro, me lembrei de uma viagem de Uber que me forneceu interessantes dados de gramática. Não a gramática que vocês conheceram na escola, mas algo bem mais interessante. Aliás, uma breve viagem de Uber já é suficiente para tratados inteiros de Linguística e de Sociologia.
A certa altura da viagem, o motorista disse que o mundo está degenerado porque “as meninas estão engravidando aos 13 anos de idade”. Atente-se para a seleção dos constituintes de sua frase. Ora, engravidar não é algo que se faça sozinho – nem a Virgem Maria o fez, segundo os da crença. Então, por que o motorista, ao tratar da degeneração do mundo, inclui em sua frase, e na posição de sujeito, como se fosse um agente, apenas quem sofreu uma dada ação e o seu resultado? Por que ele não mencionou a outra parte que necessariamente participa do processo de engravidar?
E, pior ainda: sabe-se que, por lei, relações sexuais com uma criança de 13 anos é estupro de vulnerável. Então, por que ele não mencionou que a gravidez das meninas de 13 anos resulta de estupro? Por que, ao tratar de gravidez por estupro, o motorista do Uber não incluiu o agente estuprador nem o estupro como causa da gravidez? Apenas incluiu suas vítimas (como sujeitos da ação, é importante dizer) e seu efeito, dando a entender que apenas isso existe?
A linguagem revela como nossa mente funciona, e o que reconhecemos como existente, como legítimo. A cognição misógina do motorista se escancara na forma como ele seleciona os constituintes de sua frase. Sua afirmação isenta homens que estupram meninas desde que o mundo é mundo, e coloca nelas a causa e a culpa por um desejo pedófilo que é de muitos homens.
Não há mulheres em Blonde
Disponível na Netflix, Blonde é uma pretensa biografia, ou algo que o valha, da icônica Marilyn Monroe, falecida precocemente no auge da carreira. A proposta do diretor Andrew Dominik, pelo que entendi, era a de realizar um enquadre intimista da história da atriz estadunidense nascida em 1926 e falecida em 1962. De fato, permeiam o filme imagens em plano fechado de uma Marilyn encarnada pela belíssima e sempre sensível Ana de Armas.
Sabendo dessa informação, me lembrei também de filmes que abordam contextos íntimos e sentimentais de personagens famosos. São assim o lindo O primeiro homem, de Damien Chazelle (2018), e o lindíssimo Loving, de Jeff Nichols (2016). Mas Blonde é um engodo tão misógino e tão constrangedor que, em vez de intimismo, os planos fechados de Armas/Marilyn comunicam voyeurismo e fetichismo, principalmente para quem aguentou assistir até o final. Voyeurismo e fetichismo grosseiros, feito por homens misóginos para homens misóginos.
A pretexto de revelar os sentimentos pessoais de uma mulher, Dominik consegue a proeza de fazer um filme em que não há mulheres: há apenas a realização material do desejo dos misóginos. Apenas pessoas do sexo feminino pensando, falando e agindo conforme os misóginos desejam que elas falem, pensem e ajam.
Nada muito diferente do que fez o motorista do Uber: em Blonde, as personagens do sexo feminino são fantasias masculinas, objetos de desejo. Esse é o lugar existencial em que os misóginos querem que as mulheres estejam. Se são reconhecidas como sujeitos de alguma coisa, só se for da própria desgraça.
Uma estética para nada
Nesse sentido, de nada servem as estratégias estéticas que Dominik emprega para comunicar sua pretensa intenção intimista. A misoginia de seu filme é denunciada também na falta de sentido, por exemplo, na intercalação entre imagens coloridas e em preto e branco. Por algum tempo tentei entender o que aquilo significava, mas não encontrei qualquer diferença de perspectiva da personagem em uma e outra construção cromática.
Por exemplo, poder-se-ia pensar que essa diferença marcaria duas subjetividades de Marilyn, uma íntima, outra como atriz; ou poderia retratar diferenças de humor e personalidade. Mas, todo o tempo, a Marilyn de Dominik é a mesma: uma pin-up enlouquecida pelas tentativas frustradas de ser mãe, prostituída, infantil e constantemente desejosa de uma figura masculina paternal. Quanto a isso, beira o insuportável ouvir repetidamente Marilyn referir-se aos maridos como “daddy”.
Note-se que a perturbação psíquica da personagem pela falta de um homem é reproduzida a partir da própria perturbação de sua mãe (Julianne Nicholson), que enlouqueceu também porque, na narrativa, o pai de sua filha a deixou, e Norma Jeane (nome original de Marilyn) seria a culpada disso, é claro.
Me pareceu também parte da suposta opção intimista de Dominik a escolha da tela com razão de aspecto 4.3, que também constrói um enquadre aproximado dos personagens. Isso faz com que até na tela pequena da TV os personagens pareçam mais próximos e íntimos.
Porém isso também existe a serviço do voyeurismo, já que não raro Armas/Marilyn está em situações que sugerem sexo e exibição de seu corpo semidesnudo. E também do fetiche, em situações de estupro, aborto e sofrimento físico e emocional, perpetradas por homens e/ou justificadas pela identidade patológica que Dominik escolheu para a personagem.
Blonde desrespeita a memória da pessoa que retrata
Uma das evidências da objetificação da personagem existe, por exemplo, no tempo do filme em que seu corpo é oferecido ao deleite masculino. Dominik gasta minutos com Armas/Marilyn em câmera lenta na famosa cena da grade do metrô, que exibe as partes íntimas da atriz/personagem. Mas não há quase nenhuma cena (não me lembro de nenhuma, mas mesmo assim me permito alguma margem de erro) em que a personagem aparece em processo de criação artística. Ela não se mostra obtendo prazer no trabalho, no estudo ou na companhia de outros artistas e amigos.
Tudo para Marilyn é sofrido, doloroso, para deixar clara a falta que um homem faz na vida de uma menina. E é sobre homens também os parcos momentos de verdadeira paz da personagem. São eles junto ao marido Arthur Miller, aliás a única sequência de que realmente gostei, graças à delicada química entre Ana de Armas e Adrian Brody. Não à toa, foram os únicos momentos do filme em que Marilyn foi realmente reconhecida intelectualmente por alguém.
Mas, infelizmente, até aí o que se vê é a destruição de mais um universo de vivência da personagem, pela impossibilidade de se realizar como mãe – mais uma expectativa dos homens sobre o que querem as mulheres. Ao fim e ao cabo, Blonde é um desrespeito à memória da personagem que pretendeu retratar.
O que poderia estar em Blonde
Um dos sintomas da opressão estrutural, de raça, classe, gênero etc., é a de que o opressor destitui do oprimido qualquer potência de agenciamento e protagonismo sobre sua própria vida. Isso acontece por exemplo em filmes misóginos como Uma mulher alta, de Kantemir Balagov (2019) e Roma, dirigido por Alfonso Cuarón em 2018 (este, além de misógino, racista).
Um exemplo de personagens oprimidos em condição de protagonismo de pensamento, discurso e ação está no magnífico First Cow, de Kelly Reichardt (2020), a meu ver o filme mais importante desta década, até agora.
Não estou aqui sugerindo que se suprima a faceta dolorida de Norma Jeane. Sabemos que ela foi uma criança abusada, adolescente abusada, mulher adulta abusada e explorada de inúmeras formas por canalhas de todo tipo. Porém faltou, e não me furto a supor que Dominik, por pura misoginia, o tenha suprimido, a faceta de uma pessoa que tinha um projeto profissional preciso e que realizou trabalhos interessantes no cinema para além das comédias em que o que lhe sobrava era o estereótipo da loira sem inteligência.
Mesmo mencionada, essa carreira não interessou a Doninik enquadrar. Assim como o motorista do Uber, ele deixou muita coisa importante de fora. O diretor chega a interromper a cena da primeira leitura numa peça de teatro no momento em que Marilyn falaria. Aliás, algo que certamente faria sem usar a voz infantilizada (provavelmente, uma saída para contornar a gagueira da atriz) que caracterizou sua passagem pelo cinema de comédia.
Vemos o mundo como somos
Obviamente, a opção narrativa de um diretor (Dominik roteirizou o filme com base no livro de Joyce Carol Oates) para retratar um personagem não se obriga a se colar aos acontecimentos da vida desse personagem. Aliás, tudo o que qualquer pessoa pensar e defender sobre qualquer um sempre se incluirá em alguma perspectiva. Isso ocorre porque não vemos o mundo como ele é, mas sim como somos.
Por isso, sinto-me livre para não atrelar minha crítica de Blonde a uma suposta veracidade cabal da vida de Norma Jeane, até porque isso não existe. Porém, também é absolutamente inverossímil, e obviamente misógina, e por isso horrorosa, a construção da personagem que vemos na tela. Decerto, não se encontram ali mínimas condições para detectarmos algo além de uma subjetividade colonizada e forjada a partir das expectativas masculinas sobre as mulheres.
Toda beleza será castigada
Em relação a isso, posso comparar Blonde a dois filmes sobre artistas homens que enriquecem nossa visão sobre eles. Trata-se de Rocketman (2019), de Dexter Fletcher, e Elvis (2922), de Baz Luhrmann. O primeiro constrói um Elton John como um personagem independente, centro de uma narrativa integrada a seu trabalho de maneira interessantemente original. O segundo enquadra uma pessoa lúcida e consciente dos caminhos que deveria seguir para alcançar suas realizações, e que fracassou mais por suas qualidades de caráter do que por outra coisa.
Portanto, o Cinema já ensinou como apresentar personagens famosos para além dos estereótipos que os cercam. Andrew Dominik tinha outras possibilidades diante de si para construir uma figura multifacetada. Porém, para nosso horror, escolheu oferecer ao deleite sádico do espectador masculino uma sex symbol que, por 200 minutos de sofrimento, e até em seu último minuto, é punida por sua beleza e sensualidade, mais uma vez por um homem, e mais uma vez por alguém em quem confiava.
Filmes como Blonde jamais deveriam ser feitos.
Direção: Andrew Dominik
Roteiro: Andrew Dominik
Edição: Adam Robinson
Fotografia: Chayse Irvin
Design de Produção: Florencia Martin
Trilha Sonora: Nick Cave, Warren Ellis
Elenco: Ana de Armas, Adrien Brody, Julianne Nicholson, Lily Fisher