Relato final
Uma das evidências do presente trágico que vivemos é termos de tratar com absoluta atenção e urgente importância as obras documentais e de ficção acerca da Segunda Guerra Mundial e, mais precisamente, do Holocausto judeu. Os streamings oferecem variadas perspectivas contemporâneas sobre esse período pavoroso da História humana. Elas mostram que talvez ainda tenhamos de percorrer árduos caminhos para descobrir novas facetas da maldade que o ser humano já foi e ainda é capaz de imaginar e praticar contra seu semelhante. Relato final (2020), dirigido pelo já falecido diretor britânico Luke Holland e disponível na Netflix, se inclui entre essas produções.
Os mais recentes acontecimentos relacionados à Faixa de Gaza complicam ainda mais nossa tentativa de pelo menos congelar um pouco as prestações das dívidas impagáveis de humanos para com humanos. Houve, de fato, o recente terrorismo do Hamas contra israelenses inocentes. Mas também existe a terrível investida de décadas sobre o povo palestino também inocente. E não há perspectivas de que essa situação catastrófica mude de configuração.
O Holocausto nazista foi uma política pública
Igualmente, é oportuno perguntarmos por que um genocídio perpetrado por brancos europeus contra outros brancos europeus segue interessando intelectuais de todas as raças. Em Crítica da razão negra, o historiador camaronês Achille Mbembe, um dos mais relevantes pensadores pós-colonialistas, produziu uma robusta argumentação relatando como o projeto genocida nazista, promovido a política pública, foi a iniciativa estatal mais estruturalmente acabada do processo de colonização nas Américas.
Em resumo: para Mbembe, há muito dos navios negreiros nos trens que partiam para Auschwitz. E, da mesma forma, há muito de Auschwitz em todo discurso e ação racista e eugenista por todo o mundo. É como diz o rap:
Relato final e as novas perspectivas para o horror nazista
Falar do que Relato final traz de novo não significa necessariamente originalidade no levantamento de alguma questão. Mas agora há algo novo na abordagem de problemas históricos em documentários. Muitos mantêm a perspectiva macrossocial dos fatos. Porém, interessa a diversos realizadores penetrar nos fluxos cotidianos que sustentam e garantem a perpetuação das formas de pensamento relacionadas aos regimes políticos, qualquer que seja a sua natureza.
Nesse sentido, Relato final se aproxima de outro documentário da Netflix, chamado Homens comuns: assassinos do Holocausto, realizado por Manfred Oldenburg em 2023. Em ambos os casos, a ênfase da construção argumentativa recai sobre impressões, pensamentos e sentimentos das pessoas comuns. Especificamente, cidadãos alemães que testemunharam e, muitos deles, participaram diretamente e indiretamente da grande estrutura estatal que perpetrou o Holocausto judeu.
Contudo, há diferenças entre essas duas produções que as tornam complementares. Homens comuns focaliza especificamente os alemães civis de repente arregimentados para matar judeus, sob o pretexto de proteger as cidades em que viviam. O documentário é praticamente um artigo acadêmico em forma audiovisual. Há um problema a ser abordado: como aquelas pessoas se prestaram à tarefa horrenda, abominável, de matar famílias inteiras, muitas vezes suas conhecidas.
E há ainda uma tese, composta e defendida por historiadores, cientistas políticos, advogados e psicólogos. Eles trabalham juntos na composição de argumentos que ratificam o conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt: ninguém ali era um monstro. Porém, estranhamente, nenhum deles cita a autora alemã.
As realidades começam a ser construídas nos discursos
Também com um enfoque pessoal, Relato final está atento aos micropoderes e aos valores sociais que saltam aos olhos quando as relações pessoais são tratadas como parte da estrutura social. Esses poderes e valores são explorados e mesclados aos discursos que começam a circular. Eles trazem as ideias e convicções que o grupo fascista que está no poder deseja incutir como realidade ideológica e de ação.
Essa tese é a base estrutural de Relato final, que se desenrola transformando-se em documento histórico valioso. Na maior parte de seus 94 minutos, o que ouvimos são casos e impressões contadas por pessoas que viveram sua juventude no tempo da ascensão e hegemonia do Reich. A ideia é semelhante à de Homens comuns: ninguém ali babava de ódio aos judeus. Mas todos alimentavam algum sentimento positivo pelo regime que se impunha nas mais comezinhas tarefas diárias.
Com efeito, o espectador de Relato final assiste perplexo aos depoimentos de homens e mulheres que aderiram ao partido para usar uniformes bonitos e cantar canções agradáveis. Fazer parte da juventude hitlerista não implicava pactuar com o futuro genocídio que se avizinhava. Usar as roupas, cores e emblemas da grande rede do nacional-socialismo não significava nada mais além de fazer parte de um projeto maior, do tamanho do país. Mas pouco a pouco muitos perceberam que havia algo bem errado.
Digo: nem todos, já que, para horror até do próprio Holland, o negacionismo em muitos também persiste mesmo décadas após provas e mais provas dos horrores que o fim da guerra revelou.
O lugar de Relato final na rede de produções audiovisuais sobre o Holocausto
Evidentemente, assistir a Relato Final se torna uma experiência muito mais enriquecida se estabelecermos interlocuções com esse documentário pensado e filmado durante quase dez anos por Luke Holland. O interlocutor mais ilustre de Relato final é inequivocamente a obra-prima Arquitetura da destruição (1991), disponível de graça no Youtube. A tese do diretor Peter Cohen é a do Holocausto como um projeto estético de Adolf Hitler. Essa ideia encontra grandes argumentos nas entrevistas que Holland fez de alemães que vivenciaram a emergência do nacional-socialismo como discurso, narrativa e propaganda diuturna.
Porém, o tempo mostrou que a narrativa de Arquitetura da destruição não estava completa. Faltava a voz do chão das ruas. Com efeito, há outros documentários com depoimentos de cidadãos comuns que viveram o cotidiano da Alemanha nazista. Porém, Relato final traz uma joia que o singulariza. Trata-se do confronto entre quem viveu o fascismo e o ódio entre seres humanos, e quem, bem mais jovem, acredita que eliminar o outro é solução para os problemas do capitalismo em sua fase atual.
Relato final e Homens comuns dialogam com os brasileiros que ainda têm atravessada na garganta a experiência de lidar com o fato de que gente que nunca poderia alcançar o poder no Brasil passou quatro anos destruindo políticas públicas que propunham diminuir o racismo, a misoginia, a desigualdade e a injustiça social. Esses dois documentários, evidentemente, não respondem perguntas que custam uma vida para serem minimamente tratadas. Mas trazem insumos que nutrem a necessidade de muitos de explicar como dezenas de milhões de brasileiros em 2018 e 2022 votaram em gente que se deixou fotografar ao lado de europeus neonazistas e príncipes de países que negam direitos básicos às mulheres.
O preço de nossa sobrevivência é a eterna vigilância
Luke Holland deixa para a parte final de seu filme a cena em que alemães mais velhos se propõem a dialogar com jovens extremistas de direita. Assim, ouvimos pessoas jovens com as mesmas soluções simplórias e cheias de raiva para os problemas que eles enxergam. No caso do filme: como combater o armênio com uma faca na mão dentro do ônibus. Matá-lo é a solução simples e mais à mão para as mentes obtusas, sem perspectiva e sem futuro.
O velho alemão conhece o passado e está consciente de qual futuro as ações de extermínio podem engendrar. Assim, tenta mostrar ao jovem extremista o cenário que a mera eliminação do semelhante transformado em diferente pode configurar. Se ele causou alguma impressão com sua fala e sua figura, não posso dizer. Afinal, o velho alemão é apenas uma voz entre muitas vozes da cabeça dos extremistas, que repetem ad nauseam o que estamos já cansados de conhecer.
As perspectivas discursivas que Luke Holland escolheu para Relato final o transformam num registro imprescindível e numa prova cabal da necessidade de revisão constante das bases de conhecimento e padrões de pensamento que sustentaram o regime nazista. Essas bases e padrões, após terem sido engendrados, jamais desaparecerão. Elas estarão para sempre entre nós. E o preço de afastarmos e mantermos a gente horrível que os defende fora dos círculos de poder será sempre a eterna vigilância.
Direção: Luke Holland
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