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Este texto contém spoilers do anime “Pluto”, disponível na plataforma Netflix.

A distopia como espelho

O tempo é um futuro distante e não definido. O cenário, um pós-guerra ainda recente, depois que humanos e robôs lutaram ora como aliados, ora como inimigos. O lugar, uma vasta região da Pérsia devastada por inúmeras batalhas. Militares convocam o pacifista Épsilon, um dos robôs mais avançados da Terra, a incinerar a área degradada para que a reconstrução tenha lugar.

Nessa tarefa, ele é levado a um porão onde, horrorizado, se depara com toneladas de robôs mortos, para que ele os reduza a cinzas. Ou seja, desapareça com a sucata dos de sua espécie. Dessa forma, para Épsilon se tornar um varredor de cinzas de campo de concentração, só falta o pijama listrado.

Se alguém me pedisse para descrever e explicar o que é uma narrativa distópica, eu mencionaria a cena acima, do anime “Pluto” (2023), criado por Osamu Tezuka a partir do mangá de Naoki Urasawa. “Pluto” traz a dicotomia fundamental que caracteriza a distopia perfeita. O anime constrói e propõe ao espectador uma outra realidade, com fatos, cenários e tecnologias que no tempo em que vivemos são apenas, se tanto, imagináveis. Mas, mesmo assim, repete e revigora questões e problemas que, para o narrador, ficam mais evidentes quando as amarras e limites factuais das realidades do presente se desfazem.

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Na internet, leio que uma distopia é o “lugar ou estado imaginário em que se vive em condições de extrema opressão, desespero ou privação”. Essa definição envolve apenas a face figurativa do contexto distópico. Portanto, não abarca o confronto entre narrativas e tensões de diferentes realidades, como se uma contraparte fosse o reflexo da outra num espelho. Esse confronto é relevante porque nos permite vermos a nós mesmos como se fôssemos outras pessoas, em outros lugares e outros tempos. Como se estivéssemos fora de nossos corpos.

Construímos universos diferentes para tratar dos mesmos problemas

A grande vantagem da criação de uma nova e diferente realidade ficcional é a de realizar articulações entre ideias e argumentos não possíveis ou aceitáveis na realidade, digamos, concreta, visível, palpável e presente. Além disso, imaginar um mundo que sabemos não ser ainda tecnologicamente possível nos permite suportar, deslocadas no tempo e no espaço, verdades que, se jogadas em nossa cara, na vida que temos agora, talvez não suportaríamos.

Por exemplo: a visão do gigantesco amontoado de ferro distorcido diante de Épsilon não causa tanto horror quanto a visão que milhares de corpos de judeus mortos provoca quando somos apresentados às imagens de campos de concentração nazistas.

Entretanto, a construção de universos distópicos não é a única forma de alterar elementos ficcionais no audiovisual para reforçar, amenizar ou metaforizar ideias e mensagens. O formato animação também é um meio capaz de viabilizar ou modificar o impacto de determinados elementos do enredo ou da narrativa.

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Sendo um anime que trata de guerra, “Pluto” necessariamente traria imagens fortes, aterrorizantes até, para os espíritos mais sensíveis. Esse sentimento se intensificaria com o fato de que o anime aborda especificamente a perda de vidas preciosas por causa da guerra. Faz isso justamente para propor uma problematização, reflexão e ampliação do que entendemos como sendo vida.

Mas nem por isso as imagens que vemos na tela da Netflix são menos impactantes. “Pluto” propõe um mundo em que a inteligência artificial favorece a criação de robôs capazes de ganhar o estatuto de pessoas. Assim, robôs-crianças mutilados, por exemplo, são como crianças mutiladas. Por isso, o anime é absolutamente bem-sucedido na empreitada de nos convencer plenamente da verossimilhança e plausibilidade de seu mundo distópico. Nele, a visão de pequenos robôs mutilados e mortos (sim, a palavra se aplica aqui) nos dói como se crianças fossem.

Os japoneses cumprem cada vez melhor a tarefa de pensar a guerra

Quem acompanha a produção audiovisual japonesa não precisa pesquisar muito a fundo para se deparar com a gigantesca ferida aberta da guerra em que os cineastas nipônicos não se furtam a pôr o dedo. Isso acontece muito fortemente na celebrada escola de animação japonesa, composta de variadas vertentes. Alguns realizadores podem ser tidos como grandes elaboradores estéticos dos terríveis acontecimentos ligados ao ataque nuclear sobre Hiroshima e Nagazaki, ao fim da Segunda Guerra Mundial.

Isso foi feito de forma explícita e figurativa, como nos avassaladores “Túmulo dos vagalumes”, de Isao Takahata (1988), e “Gen pés descalços” (1983), de Mori Masaki. Mas também foi feito de forma figurada, nos excelentes “Nausicaã e o vale do vento” (1984) e “A princesa Mononoke” (1997), ambos de Hayao Myiazaki. Vou citar apenas esses filmes. Mas o leitor pode encontrar inúmeros exemplos de outros que abordam mais ou menos diretamente a Segunda Guerra Mundial, e também as mazelas que toda guerra traz.

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“Pluto” se inscreve nessa tradição ampliando o campo de pensabilidade sobre o tema ao agregar novas esferas conceituais para a reflexão sobre o tumor metastático que todo tipo de guerra impõe à humanidade. Fazer isso em desenho animado permite ir ainda mais fundo. O desenho, ao minimizar materialmente o horror inerente aos efeitos da destruição, autoriza-se a intensificar o terror como conteúdo, como ideia.

A segunda Guerra abriu a caixa de Pandora

No caso específico da Segunda Guerra Mundial, “Pluto” mostra que, mais de sete décadas depois, sequer começamos a entender as motivações para, como humanidade, perpetrarmos um conflito incluindo ações e reações que jamais deveriam ser repetidas – talvez os piores crimes contra a humanidade já cometidos. Um conflito em que milhões de pessoas foram mortas a partir de políticas públicas que institucionalizaram o genocídio. E milhares de pessoas morreram vítimas de uma bomba cuja letalidade nem seus criadores puderam mensurar.

Portanto, talvez ainda não saibamos tudo sobre as forças históricas, éticas e intelectuais que motivaram a Segunda Guerra em todo o seu percurso. A meu ver, só avançaremos nesse debate neste momento se tratarmos os fatos daquele tempo como partes integradas de um fenômeno mais amplo.

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A Segunda Guerra abriu a caixa de Pandora, e dela saíram os dois monstros do apocalipse que foram o genocídio nazista e a bomba atômica. Mas, em minha vivência como expectadora do audiovisual, não tenho memória de outra obra além de “Pluto” que tenha tencionado tratar articuladamente de ambos os fatos. Mas, agora, nada me parece mais terrivelmente verdadeiro do que essa articulação. Entretanto, isso não acontece fora de contexto. Já faz tempo que, em relação à bomba atômica, os que melhor tratam disso ficcionalmente são os japoneses.

Ainda não fomos até o fim

Aliás, me chama a atenção que 2023 seja um ano em que o audiovisual se volta com grande intensidade para a Segunda Guerra Mundial, focalizando suas principais heranças malditas: o holocausto judeu e a bomba atômica. Haja vista o lançamento recente de “Godzilla minus one”, de Takashi Yamazaki, muito celebrado mesmo revisitando pela enésima vez o icônico personagem.

E, sobre o genocídio nazista, streamings como a Netflix oferecem farto acervo de obras que apresentam perspectivas contemporâneas para o tema. Dois exemplos disso são os documentários “Relato final”, de Luke Holland (2020) e “Homens comuns: assassinos do holocausto”, de Manfred Oldenburg (2023), que enquadram a disseminação cotidiana das ideias que consolidaram entre os cidadãos mais comuns do país a aceitação do extermínio dos indesejados (entre eles milhões de judeus) na Alemanha.

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Em 2023 também foram lançados “Zona de interesse“, de Jonathan Glazer, e “Oppenheimer”, de Christopher Nolan, este último enquadrando a vida do hoje considerado o criador da bomba atômica. Vale dizer que, diferentemente de “Pluto”, “Oppenheimer” explicita, mas não provoca expansões no campo de pensabilidade sobre esse tema.

Explico: “Oppenheiner” reconhece questões humanas compatíveis com as contradições que o filme aborda, mas não se interessa em desenvolvê-las, escolheu não ir a fundo com elas. A patética cena em que homens brancos poderosos decidiam quais cidades japonesas seriam alvos das bombas atômicas, da mesma forma como escolhem os pratos no cardápio de um restaurante qualquer, tinha um potencial poderoso de discussão que infelizmente não foi estendido.

Pluto associa a bomba atômica ao genocídio nazista

Isso é uma pena, porque ali já estava latente a íntima conexão entre o holocausto nazista e as bombas atômicas. Porém, a oportunidade que Christopher Nolan perdeu foi agarrada com braços e pernas por Naoki Urasawa e Osamu Tezuka, porque os realizadores de “Pluto” levam essa conexão às últimas consequências. Aliás, não tenho visto obras de ficção anglo-saxãs que abordem a Segunda Guerra relacionando esses fatos com a sofisticação temática que os dois realizadores japoneses logram fazer.

A linha narrativa de “Pluto” sustenta-se sobre o que estrutura a humanidade desde a emergência do capitalismo: criam-se campos de concentração e de extermínio para não-pessoas; pessoas que valem menos; pessoas de uma categoria inferior; portanto, pessoas que podem morrer, como atesta a filósofa Judith Butler. Igualmente, atiram-se bombas sobre as pessoas pelos mesmos motivos.

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Na distopia do anime, essas pessoas são os robôs, estes também categorizados relativamente à maior ou menor sofisticação de seu sistema operacional, mas num tempo em que leis já haviam sido criadas para que também recebessem direitos como os humanos. E, tal como em relação aos humanos, há quem reconheça seus direitos, e há quem não. Há quem os culpe pelas mazelas do mundo, e essa suposta culpa autorizaria seu extermínio.

O que torna os robôs melhores é o que também torna as pessoas melhores

Para falar sobre “Pluto”, sinceramente acho que a trívia sobre suas referências e seu enredo é o que menos importa. O leitor pode facilmente acessar a informação de que a série é um desenvolvimento do anime “Astroboy”, de onde o personagem Atom e o antagonista “Pluto” emergem como inspiração. Não assisti a “Astroboy”, mas não vejo problema em reconhecer “Pluto” como obra de Arte independente. Sobre isso, intuo que a série da Netflix representa uma evolução extraordinária dos argumentos que “Astroboy” pode ter proposto. Tanto é assim que os resenhadores de “Pluto” nem dedicam muito tempo a essa informação.

O que é realmente relevante no anime são as premissas que alicerçam a personalidade e as ações dos personagens, e as relações humanas (sim, humanas, até com robôs) que se desenrolam ao longo de seus oito episódios. Há debates já superados que “Pluto” felizmente não aborda. Por exemplo, aquela ideia de que o ser humano brinca de deus na pretensão de criar seres à sua imagem e semelhança. Em “Pluto”, esses seres já estão lá. Já passaram pela fase de conquista de espaço no mundo (tema lindamente explorado por exemplo em “Blade Runner” (1982), de Ridley Scott, referenciado sutilmente). Mas agora precisam que seus direitos de existência social sejam também parte do pacto civilizatório.

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“Pluto” apresenta as justificativas para que esses direitos existam e sejam respeitados. Entretanto, os robôs para muitos ainda os são o Outro, aquele que vale menos, por não serem gente, no sentido orgânico da palavra. Na distopia de “Pluto”, os robôs são todas as minorias desprivilegiadas e subalternizadas do mundo. Elas ainda precisam se provar como gente, provar seu estatuto de pessoas e a dignidade de seus corpos, para não serem relegadas a um mundo de invisibilidade e violência.

O que isso tudo tem a ver com robôs e Inteligência Artificial

Analogamente, o tema Inteligência Artificial em “Pluto” também não se encaixa nas narrativas hegemônicas sobre o tema, aquelas que dizem respeito às ideias de dominação e controle mundial desenvolvidas por exemplo na saga “Terminator”, de James Cameron. Aliás, o próprio conceito de inteligência aqui precisa refinar-se para se ajustar à perspectiva da série. Em “Pluto”, inteligência é a potência de fazermos e realizarmos aquilo que o ser humano tem de melhor. Nesse sentido, ela está muito ligada à nossa capacidade de amar alcançando esferas de existência mais amplas: amar as pessoas, amar o planeta, amar a humanidade. Amar tão profundamente a ponto de desconstruir o ódio.

Observe-se que, no anime, os robôs mais desenvolvidos do mundo não são apenas aqueles com algum poder bélico ou recursos tecnológicos, capacidade de cálculo e elaboração de soluções. Não são essas as características que os tornam diferenciados. É outra coisa: cada um dos super-robôs se destaca por sua ampla capacidade de amar num sentido agentivo e incondicional.

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Assim, cada um deles se caracteriza por aquilo que temos de melhor: o amor ao planeta e à natureza; o amor à arte; a capacidade de constituir famílias a partir de laços de afeto; a lealdade, a honra; a capacidade de inserir numa dimensão estética as experiências mais cotidianas; e a força e a coragem para proteger os seres mais vulneráveis. São essas as características que os tornam extraordinários.

O paradoxo que nos constitui

Porém, como a série mostra, tudo isso não é suficiente para a perpetuação da presença dos robôs no mundo. Todos eles sucumbem diante do Mal absoluto representado por Pluto. A grande virada da série, que a eleva de obra de Arte a Obra-prima, é que o que é capaz de derrotar o Mal absoluto é justamente o paradoxo que nos constitui como humanos. Especificamente: o fato de que trazemos dentro de nós, em igual possibilidade, o Bem e o Mal.

É por isso que receber as memórias morais e éticas de outros robôs não é suficiente para Atom se fortalecer e construir os recursos necessários para enfrentar o Mal absoluto. Essas memórias não podem lhe trazer conhecimento pleno, porque elas não provocam o autoconhecimento. Atom só conquista essa potência quando recebe a memória do robô mais poderoso, porque capaz igualmente de amar e odiar. E o paradoxo entre Bem e Mal que incorpora torna Atom, por fim, completamente humanizado.

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(Nesse sentido, é interessante notar que, assim como há várias formas de amor, também haverá várias formas de ódio. Comentando os atos de vandalismo em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023, o então Ministro da Justiça Flávio Dino menciona duas vezes a palavra “ódio” para se referir ao que testemunhou: ódio nos olhos dos vândalos; ódio nos olhos dos militares. Evidentemente, ele não está falando do mesmo tipo de sentimento nos dois casos)

O que a experiência de Atom nos ensina

Integrada às memórias dos outros robôs, essa humanização capacita Atom a agenciar o paradoxo entre Bem e Mal. E isso o capacita a enfrentar o desafio gigantesco de salvar o planeta. Durante um período de congelamento e maturação, ele aprende a lidar com sua nova natureza paradoxal. Com isso, ele constrói, com o apoio das memórias dos outros robôs, o arbítrio necessário para o melhor caminho a tomar. O toque final da beleza de “Pluto” é que essa potência gigantesca expande tanto sua capacidade de pensar, que ele inclusive reconhece o mesmo paradoxo em outros seres. Se esse paradoxo existe, sempre haverá esperança de transformação.

A meu ver, o mais importante tematicamente em “Pluto” é a articulação poderosa entre a destruição concreta que a guerra produz, e discussões filosóficas que para muita gente são abstratas. Isso evidencia que a filosofia não pode nunca ser um luxo a que apenas os privilegiados em suas escolas ricas têm direito. A filosofia subjaz a toda ação cotidiana.

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Por isso, as ideologias estão lá sempre, motivando qualquer ação nossa, para o bem e para o mal. O corrupto só aparentemente age apenas por ganância. Ela, na verdade, é efeito de sua convicção de que o mundo e tudo o que está nele, inclusive as pessoas, é sua propriedade. Por trás da ideologia, como uma vez disse o senador Randolfe Rodrigues, tem negócio na parada, mas por trás do negócio também existe a ideologia.

Dessa forma, o genocídio e a destruição em massa são perpetrados sempre com vias de lucro. Mas o que está na raiz da ganância é a convicção de que os que serão mortos são pessoas de uma categoria inferior, são menos pessoas do que aqueles que as matam. São pessoas que valem menos, portanto podem morrer.

Filosofia é artigo de primeira necessidade

A reflexão filosófica agrega uma segunda camada ao significado das experiências da vida. Por isso, é capaz de nos trazer autoconhecimento e conhecimento das pessoas e do mundo. Porém, obviamente, é por isso mesmo que a filosofia é tratada como coisa menor. Interessa ao fascista opressor que o oprimido não se reconheça como tal, e não reconheça o opressor como tal.

“Pluto” é, acima de tudo, a filosofia em ação. É pensamento em intervenção transformadora e reveladora da necessidade imediata de pensarmos sobre nossa própria existência, enquanto ainda existimos. Nem que seja pelo menos para reconhecermos que para muitos nossa vida é descartável, desimportante. Entretanto, ela é inerentemente valiosa para nós mesmos, nossos semelhantes e o mundo.

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Essa reflexão mostra quão fortemente a produção da arte é também produção de conhecimento. O que definimos como a excelência na arte inclui, a rigor, o fato de que há conhecimento produzido ali. Isso também explica o horror dos fascistas à arte e à cultura… Por isso, cultivo cada vez mais fortemente a ideia de que é pura perda de tempo ler, ou assistir, ou ouvir algo em qualquer campo do conhecimento, seja Arte, seja qualquer outra coisa, que não se proponha a ser explicitamente político.

“Pluto” eleva nosso nível de compreensão sobre o que é uma obra de Arte verdadeira, e aumenta nossa demanda por uma Arte que também nos traga conhecimento e autoconhecimento.


Ficha Técnica
Pluto (2023) – Japão
Direção: Toshio Kawaguchi
Roteiro: Tatsuro Ynamoto
Fotografia: Mitsuhiro Satô
Trilha Sonora: Yûgo Kanno
Elenco: Shinshû Fuji, Yôko Hikasa, Toshio Furukawa, Mamoru Miyano, Kazuhiro Yamaji

 

 

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