Folhas de outono
Última atualização: 28/03/2024
No dia em que assisti a “Folhas de outono”, de Aki Kaurismäki (2023), disponível na plataforma Mubi, também revi “Medo da verdade”, de Ben Affleck (2007), na Amazon Prime. “Medo da verdade” é o único filme de Affleck de que gostei verdadeiramente, e a revisão não mudou minha primeira impressão. Mas confesso que para isso suspendi algumas percepções conceituais que, em 2024, o conhecimento que temos sobre misoginia e racismo já consolidaram.
Fiz isso porque, de todo modo, “Medo da Verdade” já apresenta, embora ainda perifericamente, perspectivas conceituais contemporâneas sobre raça e gênero. Isso é notável porque, na primeira década do século 21, elas estavam praticamente invisíveis no cinema estadunidense mais comercial.
Entretanto, o que enfraquece “Medo da verdade” como Cinema se reforçou em minha mente no contraste com “Folhas de outono”. Existe no trabalho de Affleck uma preocupação em “traduzir” (na falta de palavra melhor) em linguagem verbal um horizonte sobre sociedade e ser humano que a grande maioria das pessoas adultas já está ética e intelectualmente formada para reconhecer.
Ao optar pela “tradução” linguística, Affleck esforça-se em explicar todas as nuances da crise de consciência do protagonista. Faz o mesmo em relação às ações e reações dos personagens à sua volta. Com isso, parece ter julgado que o que estava sendo apresentado cinematograficamente aos espectadores não era suficientemente completo para que entendêssemos a dimensão existencial, humana e social do problema do filme.
Consequentemente, seu terceiro ato se delonga em discursos dos personagens desenvolvendo argumentações pró e contra as decisões tomadas pelo protagonista, como se os fatos expostos não fossem suficientemente claros. Ou, pior ainda, como se o espectador não tivesse inteligência suficiente para dar conta da questão em foco e seus desdobramentos.
O que a comparação entre “Medo da verdade” e “Folhas de outono” nos diz sobre o Cinema
Numa abordagem mais ampla, isso diz respeito a uma ideia equivocada sobre o Cinema, ou qualquer outra Arte não-linguística. Essas formas de Arte são vistas como estruturas semióticas incompletas. Assim, para serem compreendidas e usufruídas, precisam ser completadas pela linguagem verbal, algo que está à mão da quase totalidade das pessoas.
Isso traz tantos problemas… vou enumerar só dois:
O primeiro problema é a falsa premissa de que a linguagem, como forma de comunicação, é melhor e mais eficiente do que as outras linguagens. É melhor do que as imagens visuais, a música, os sinais manuais, o corpo etc. Essa premissa se baseia no fato de que nosso letramento mais imediato, e mais historicamente consolidado, é a linguagem verbal. E, para nos masterizarmos em outras linguagens, precisamos igualmente passar por demorados processos de aquisição e aprendizado nelas. Em contraste, qualquer criança, não tendo nenhum problema de ordem linguística ou cognitiva, aos dois anos de idade já fala razoavelmente bem em sua língua materna.
Entretanto, preciso lembrar que nossa comunicação mais imediata é pela linguagem oral, já que, para aprendermos a ler e escrever, precisamos, a rigor, ingressar na escola. Por essa razão, em países menos desenvolvidos, diferentemente da oralidade tão acessível, a escrita e a leitura ainda são tão inatingíveis para muitas pessoas quanto o conhecimento da música ou das artes plásticas.
O segundo problema é que toda forma de comunicação e arte é absolutamente autônoma. Nenhuma delas deriva da linguagem verbal ou depende dela para existir. Por isso, pega muito mal que Ben Affleck opte por usar a linguagem verbal para explicar o que cinematograficamente já estava muito bem explicado.
Nenhuma Arte é menos completa que outra
O fato de que, socialmente, o acesso a outros letramentos diferentes do linguístico é menos facilitado do que o acesso à leitura e à escrita não tem nada a ver com a completude ou não de uma forma de comunicação. Todas se bastam em si, todas são igualmente complexas, e, é preciso lembrar, todas estão em expansão constante. Além disso, o próprio conhecimento da linguagem em suas diferentes modalidades precisa ser permanentemente ajustado, aprimorado. Por exemplo, este texto, quando for publicado, terá passado por inúmeras revisões, para se tornar mais ágil e palatável ao leitor. E eu espero no futuro aprender a fazer isso cada vez melhor.
Estou dizendo isso tudo para evidenciar a grandeza de “Folhas de outono” como Cinema pleno, e do absoluto domínio de Aki Kaurismäki da linguagem cinematográfica. Em seus trabalhos, Kaurismäki manifesta uma crença inabalável de que o Cinema lhe dá e dará ao espectador todos os elementos para que os significados trazidos por cada filme sejam reconhecidos como completos, íntegros.
Esse domínio se manifesta também na relativamente curta duração de muitas de suas obras, em si capazes de abarcar relações e integrações complexas de sentidos que vão sendo mostradas em imagens, sons, luzes, cores, disposição de cenários e personagens em cena, isso tudo em muito mais abundância do que a linguagem verbal propriamente.
Em “Folhas de outono” todas as linguagens são especiais
No caso específico de “Folhas de outono”, a duração do filme não precisa ser longa quando se conta com a cumplicidade do espectador para contribuir com suas próprias experiências de vida e dar plenos sentidos a uma história de amor. Afinal, quem nunca amou? Quem nunca sofreu por amor?
Além do que já está na tela, há um elemento extracampo explorado por Kaurismäki e incorporado a seu filme. Particularmente, o conhecimento que o espectador terá de suas obras anteriores. Quem assistiu a pelo menos uma delas não estranhará os diálogos ditos como declarações quase impessoais. Também não estranhará a disposição dos atores não raro de frente para a câmera, como se posando para fotografias antigas.
O espectador de Kaurismäki reconhecerá essa aparente impessoalidade, porque sabe que a profunda emoção está disposta em outros elementos espalhados pelo filme e também colhidos de nossa memória dos amores difíceis, amores em tempos de crise, de guerra.
Eu sempre acho lindo quando um realizador tem coragem suficiente para me chamar a conhecer mais sobre ele, para que o diálogo entre nós seja amplo em termos de elementos conceituais e experiências emocionais, intelectuais e existenciais. Acho lindo quando o realizador acredita que não precisa me explicar tudo, e que eu também posso contribuir para a obra que está sendo oferecida a meus sentidos e raciocínio.
O que torna “Folhas de outono” original
A originalidade que coloca “Folhas de outono” em muitas listas dos grandes filmes de 2023 não está na denúncia do desmantelamento humano que o capitalismo neoliberal impõe sobre toda a Europa, inclusive em países que apresentam um IDH superior ao do Brasil. Também não está em nos alertar para a irreversibilidade do esfacelamento social afetando as relações humanas mais cotidianas, e para a exploração cada vez mais brutal e violenta da força de trabalho de homens e mulheres. Isso tudo o próprio Cinema já descreveu de maneiras mais e menos brilhantes.
Como para tudo, o cenário neoliberal em “Folhas de outono” está disposto nas relações e situações que envolvem os protagonistas Ansa (Alma Pöysti) e Holappa (Jussi Vatanen). Somam-se a isso seus sentimentos e reações ao que lhes acontece. A articulação entre o que vemos na tela e o que já sabemos sobre o capitalismo contemporâneo se dá evidentemente com as ressalvas dadas à nacionalidade do espectador. No caso do Brasil especificamente, a crescente precariedade da vida de Ansa e Holappa, empurrados pouco a pouco para o subproletariado mais irreversível, parece estranha ao nosso complexo de vira-latas, que nos leva a acreditar que só há miséria em nosso país.
E ainda há as notícias do rádio de Ansa sobre a invasão russa à Ucrânia. Esse fato poderia afetar a Finlândia em 2022. O país faz larga fronteira com a Rússia, e pleiteava junto à OTAN uma vaga por fim franqueada em meados de 2023. O diálogo entre a Ucrânia e a OTAN foi um dos pivôs para a invasão daquele país.
Portanto, há a violência capitalista como contexto na história de Ansa e Hollapa, definindo sua subjetividade. Mas estarem tão próximos de uma guerra também pode abalar a esperança do casal de um dia ficarem juntos e serem felizes.
Amo muito tudo isso
Entretanto, tudo isso não é o que torna “Folhas de outono” um filme tão especial e cativante. O que nos conquista o coração vem pelo vermelho almodovariano presente em várias das cenas. A cor desperta o componente de desejo alimentado ainda mais pelo encontro entre Ansa e Hollapa, feito quase sem palavras, mas com muito Cinema.
Se junta aí a música (algumas canções inesquecíveis) escolhida a pinça cirúrgica por Kaurismäki. Nesse pormenor, dou graças a Deus pela tradução das letras em finlandês. A trilha nos faz adivinhar o que se passa na cabeças dos personagens e nos permite também reconhecer seus sentimentos a cada momento, sem que eles precisem explicar nada. Além disso, a música é absolutamente coerente com a forma de Kaurismäki dirigir seus atores, levando-os a interiorizar suas manifestações sentimentais. De linguístico, só o absolutamente necessário: “apenas sigo ordens”, diz o segurança do mercado de que Ansa foi demitida. Nem preciso dizer como adoro isso.
Suplício de uma saudade finlandesa
Em resumo, a integração entre esses e outros elementos, por exemplo, alguns comportamentos dos personagens, é poderosa o suficiente para definirmos não apenas o presente de Ansa e Hollapa, como também seu passado. Ao fim, Kaurismäki nos oferece uma história emocionante, que em muitos elementos remete ao maravilhoso “Suplício de uma saudade”, de Henry King (1955), em seus encontros e desencontros.
Assistindo a “Folhas de outono”, vemos o amor nascer de maneira delicada e despertar emoções profundas e cálida esperança. É uma história entre pessoas tidas como menos emocionais do que os brasileiros – ideia cuja falsidade está cada vez mais patente, haja vista a brutalidade que temos descoberto sobre nós recentemente. E esse é a meu ver o elemento que tornou “Folhas de outono” um filme tão querido no Brasil. Trata-se de mais um sinal destes tempos contemporâneos, em que tantas crenças caem por terra. Neles, desfazemos ilusões sobre nós mesmos e aprendemos sobre amor sincero e redentor vindo de um lugar, uma língua e um Cinema tão diferente. Essa possibilidade é algo que o presente nos dá, em meio a tanto desamor.
Direção: Aki Kaurismäki
Roteiro: Aki Kaurismäki
Edição: Samu Heikkilä
Fotografia: Timo Salminen
Elenco: Alma Pöysti, Jussi Vatanen, Martti Suosalo, Alina Tomnikov