Dias perfeitos

Por Diana Pichinine*
Última atualização: 04/04/2024

Durante os 125 minutos de sua projeção, “Dias perfeitos”, de Wim Wenders (2023), através da performance de Koji Yakusho e do roteiro escrito de Wenders em parceria com Takayuki Takuma, nos transporta a um mundo que nos sequestra da velocidade com que normalmente estamos sintonizados para darmos conta de fazer parte do mundo atual.

Durante esse tempo, diferentemente do que acontece quando assistimos a um filme de ação, somos tragados pela contemplação e pela reflexão. Não tenho nada contra filmes de ação. Mas é raro ir ao cinema e refletir ainda dentro do cinema, e não na mesa do bar ou do restaurante do pós-cinema.

Assim, ali mesmo, no escuro da sala de cinema, começamos contemplativamente a nos perguntar sobre o que teria nos roubado a placidez e a singeleza do cotidiano. Similarmente, como dizia Joaquim Pedro de Andrade, em entrevista dada em 1987 ao Libération, respondendo à pergunta “Pourquoi filmez vous?”, o que poderíamos traduzir como “Por que você faz cinema?”, Wenders nos deixou “como cachorros dentro d’água no escuro do cinema”:

Para chatear os imbecis

Para não ser aplaudido depois de sequências dó-de-peito/Para viver à beira do abismo/Para correr o risco de ser desmascarado pelo grande público/Para que conhecidos e desconhecidos se deliciem/Para que os justos e os bons ganhem dinheiro, sobretudo eu mesmo/Porque, de outro jeito, a vida não vale a pena/Para ver e mostrar o nunca visto, o bem e o mal, o feio e o bonito/Porque vi Simão no Deserto/Para insultar os arrogantes e poderosos, quando ficam como cachorros dentro d’água no escuro do cinema/Para ser lesado em meus direitos autorais.

“Dias Perfeitos” e “Paterson”: modos de cuidado de si

“Dias perfeitos” é um libelo contra a aceleração da vida cotidiana ocasionada tanto pelo desenvolvimento das tecnologias de comunicação como pelos imperativos comportamentais a que o mundo capitalista nos sentencia.

Mas é também uma obra que faz o elogio da beleza presente nas ações comezinhas do cotidiano. Nesse sentido, o filme de Wim Wenders me lembrou “Paterson”, de Jim Jarmuch (2017), estrelado por Adam Driver. Ambos os filmes remetem à discussão sobre por que vivermos a rotina cotidiana como o fardo de Sísifo. Com efeito, ambos passam a mensagem de que é possível viver a rotina cotidiana de modo diferente. Mais ao modo como Albert Camus nos orienta, em seu ensaio sobre O Mito de Sísifo, ao relembrar a necessidade de imaginarmos um “Sísifo feliz”.

Hirayama, o protagonista, trabalha como servidor numa firma de manutenção de sanitários públicos em Tóquio. Todos os dias ele acorda, observa a sombra das árvores em sua janela, borrifa água em suas plantinhas, barbeia-se, escova os dentes, veste o uniforme e desce do dormitório onde vive para tomar café numa máquina de bebidas no hall de entrada do albergue. Em seguida, entra em sua van e dirige-se ao local de trabalho sempre ouvindo alguma fita cassete no seu rádio-gravador analógico.

A seu cuidado meticuloso com as coisas, corresponde um cuidado de si perceptível pelo indisfarçável sorriso sereno de autocontentamento que esboça ao fim de cada pequena ação.

A trilha sonora é um capítulo à parte. Ela nos nos lança no universo de música norte-americana dos anos 60 e 70, período da juventude do protagonista, anterior ao das tecnologias digitais. De fato, há ali The Animals, The Velvet Underground, Otis Reding,  The Rolling Stones, Lou Reed, the Kinks, Van Morrison e Nina Simone. Tudo ouvido em fitas-cassete, rebobinadas com tampa de caneta ao final do dia.

Na contramão da correria

Hirayama executa seu trabalho com calma,  delicadeza e esmero não usuais a um mantenedor de vasos sanitários. Cada gesto meticuloso quer cuidar de que nenhum detalhe (réstia de sujeira) lhe passe despercebido. Seu colega de trabalho, um jovem homem, lhe adverte: “Hirayama, não se esqueça de em que breve esse vaso será sujo por alguém”. Ele parece não entender que, para o velho senhor, importa mais a excelência em sua tarefa do que a pressa em deixar o ambiente de trabalho. O que, claramente, é o imperativo seguido pelo jovem homem enquanto exerce sua função.

Certa vez, li que um dos modos de identificar o momento em que o Homo sapiens se tornou um ser cultural coincide, entre outros critérios, com sua preocupação estética. Por exemplo, produzir setas de lança mais afiadas do que o necessário (afiadas até a perfeição a partir do instrumental disponível à época, eu diria), e ornadas com imagens e cores.

Nossos ancestrais deixaram provas de sua preocupação estética na Caverna Blombos, sítio arqueológico localizado na Reserva Natural Blombosfontein, cerca de 300 km a leste da Cidade do Cabo, na costa sul de Cabo, África do Sul. Além de pontas-de-lança perfeitas e ornadas, cordões feitos de concha e tingidos de diferentes cores também foram encontrados. Nesse sentido, a despreocupação com o tempo de produção e com a utilidade em si de um artefato denota um novo modo de o Homo sapiens estar mundo em relação a períodos anteriores: o experimento do ócio e da beleza.

É de volta para esse mundo que Wim Wenders nos traz. Isso nos resgata da prisão da aceleração vivida na temporalidade contemporânea. Dessa maneira, nos traz pelas mãos até a experiência de que “a próxima vez é a próxima vez; o agora é agora”, como ensina Hirayama à sua sobrinha.

Um libelo revolucionário

Dias perfeitos é um libelo revolucionário (perdoem o exagero) porque normaliza a calma, a leveza e a serenidade passíveis de serem reencontradas na vida cotidiana. Isso é o contrário do que pensamos ser o tempo, e sobretudo, o tempo presente. O homem contemporâneo anseia sempre pelo que ainda-não foi visto, vivido ou experimentado. Com isso, simplesmente perdeu o sentido do agora como o portal (talvez algo análogo ao que os gregos antigos denominavam kairós) que nos abre para a possiblidade de, em existindo, pensar e agir.

Assim, o tempo do agora de Hirayama é o tempo do trabalho vivido como arte, ou ócio. É o tempo de fotografar todos os dias a sua amiga árvore, comendo o mesmo sanduíche e saboreando a bebida de sempre. Além disso, é também o tempo de observar cada detalhe em seu caminho, e apenas comunicar-se oralmente quando realmente necessário.

Entretanto, absolutamente nada no filme nos permite traçar ilações sobre como Hirayama veio a ser quem é. Trata-se de um sujeito que imprime ao mundo sua própria velocidade e que se recusa (não de modo político ou panfletário, mas sutil e delicado) a submeter-se à qualquer tecnologia que lhe retire essa liberdade conquistada, a de viver o ser que existe no tempo ao seu próprio modo.

Dessa forma, em seu dormitório, no albergue que seu salário consegue pagar, encontramos apenas livros, discos em vinil, fitas-cassete e fotografias tiradas numa máquina de fotografar analógica que precisa ter seu filme (preto e branco) revelado ao modo como faziam os antepassados nascidos no século XX. Nada naquele ambiente sugere que a película ocorra no século XXI.

 Die Gelassenheit (Serenidade)

Hirayama conseguiu, ao seu próprio modo, isentar-se do falatório cotidiano, da produtividade cotidiana, da ansiedade cotidiana. Justamente as formas de viver para as quais o sistema social que acompanha o modo de produção capitalista nos traga sem dó nem piedade. Toda criação que não visa somente à utilidade demanda tempo de reflexão, o tempo do trabalho do pensamento, o tempo do conceito.

Em resumo, Hirayama é o protótipo do dom Quixote contemporâneo. Luta contra seus próprios moinhos de vento, mas sem a revolta quixotesca. Sua serenidade (durante todo o filme, o conceito heideggeriano de die Gelassenheit não saía da minha cabeça) e delicadeza derivam desse modo de estar no mundo flutuando sobre os imperativos que social e economicamente organizam o capitalismo tardio.

Hirayama é um revolucionário delicado e silencioso. Que tenhamos ouvidos para ouvir a sinfonia do silêncio. Que tenhamos pensamento para pensar além da utilidade, da produtividade e do ganho.

It’s a new dawn/It’s a new day/It’s a new life for me/And I’m feeling good

Nina Simone

*Diana Pichinine é professora, mãe do Francisco e filósofa na horas de ócio. Para mais informações sobre a autora, siga-a nas redes sociais clicando aqui.


Ficha Técnica
Perfect days (2023) – Japão, Alemanha
Direção: Wim Wenders
Roteiro: Wim Wenders, Takayuki Takuma
Edição: Toni Froschhammer
Fotografia: Franz Lustig
Design de Produção: Towako Kuwajima
Elenco: Koji Yakusho, Tokio Emoto, Arisa Nakano, Aoi Yamada, Sayuri Ishikawa,

 

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1 comentário em “Dias perfeitos

  1. Obrigado por seu texto. Há dias assisti, e fiquei maravilhado, com essa belíssima declaração de amor ao cinema e ao humano. O que mais me espanta nesse filme é a generosa simplicidade que Win Wenders confere à sua mensagem sobre o poder da arte sobre o cotidiano. Ou, como bem definiu sua crítica, o poder da estética inerente à humanidade. Em tempos de busca doentia por alegrias e prazeres fugazes disfarçados de felicidade, é um acalanto retomar o conceito oriental de felicidade, como um estado constante de equilíbrio e de obtenção de prazer pela simplicidade.

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