Ferrari
Última atualização: 20/04/2024
O gênero de cinebiografias em Hollywood é quase um mercado, de tão abrangente e explorado. Representar em tela a vida de uma pessoa real – quase que sempre famosa – se tornou um modelo de filme repetido a exaustão e com uma receptividade fácil, principalmente por parte da indústria e da academia. No entanto, quando há uma cinebiografia nas mãos de um cineasta competente e com qualidade técnica exímia e domínio completo da diegese, como Michael Mann, Ferrari se destaca além das sucessivas fórmulas de filmar a realidade não-ficcional que existira em algum momento da história.
Evidentemente, algumas das ferramentas ainda estão ali: os textos em tela para contextualizar o recorte utilizado no começo e no final do filme. Mas são tão ínfimas que, se não as tivermos, teria pouco impacto. Inclusive, o recorte de Ferrari é preciso. Invés de ter um longo período da vida do retratado sendo considerado na obra, esse espaço-tempo é menor e muito mais coeso. Enzo Ferrari (Adam Driver) se vê com sua montadora italiana em momentos profissional e pessoal delicados. À beira da falência em uma Itália pós-guerra e já indiretamente dentro de um divórcio com Laura Ferrari (Penélope Cruz) – também sócia majoritária da empresa -, necessita assim como em uma engenharia automotiva, dar mais potência ao motor.
Retirando o ídolo do pedestal
E esse motor tem um combustível fortíssimo maquinado por Mann – os aspectos técnicos retiram Enzo de um pedestal comum aos biografados. Mesmo que acene para clássicos do cinema como Cidadão Kane onde há a investigação de um mito em câmera, sendo explorado de uma maneira que o reverenciam a todo momento, os close-ups e o exercício de profundidade de campo em Ferrari buscam outro modelo narrativo: a presença de Enzo nos ambientes como um combustor, mas sem tê-lo como o objeto mais importante de toda a mecânica.
O dinamismo dramático que o personagem de Driver emana resulta em uma filmagem que vai além de sua própria figura física. O contraceno com Penélope Cruz e Shailene Woodley -, a amante e futura esposa Lina Lardi -, acontecem em situações em que ambas as mulheres brilham. A raiva e amargura da primeira são suficientes para fugir do estereótipo da mulher italiana, enquanto na segunda há a custosa relação com um homem onde seu nome é maior que qualquer vontade.
A ação como gênero e aspecto estético em ‘Ferrari’
Mann já mostrou ao longo de sua filmografia a capacidade de esmiuçar a ação como senso estético; o tiroteio em Fogo Contra Fogo, a suja noite de Miami nas baladas e nas perseguições de barco em Miami Vice ou as cenas de luta cambaleantes, bêbadas, mas viscerais em Ali. Em Ferrari as cenas da Mille Miglia -, entre outros cortes dos carros e das corridas -, são espetaculares em toda sua completude. A movimentação fluída da câmera emerge a sensação de velocidade e ruptura da imagem, enquanto o som é o mais apurado e sensorial aspecto do longa. Feroz no rugir do motor, violento e cru nos terríveis acidentes já esperados em bonitos diálogos sobre a inescapável morte, gloriosamente vívido na cena de ópera em que Enzo revisita sua culpa e cruel no silêncio.
A vida do ex-piloto e fundador de uma das maiores montadoras de carros da história e escuderias do automobilismo é sempre uma corrida, uma disputa e Michael Mann usa de tudo em Ferrari para explorar isso. O melodrama de seus relacionamentos amorosos, familiares e de negócios, portando um luxuoso, moderno, mas inconstante automóvel, disputa espaço nas curvas e em tela com uma robusta e quase indestrutível técnica cinematográfica. O acidente resultante do embate entre os dois deixa mortos, feridos e uma história de vida que nunca pode frear.
Direção: Michael Mann
Roteiro: Troy Kennedy Martin, Brock Yates
Edição: Pietro Scalia
Fotografia: Erik Messerschmidt
Design de Produção: Maria Djurkovic
Trilha Sonora: Daniel Pemberton
Elenco: Adam Driver, Shailene Woodley, Giuseppe Festinese, Penélope Cruz