O bastardo
Gosto muito de filmes que fagocitam gêneros cinematográficos tradicionais. Gosto mais ainda quando o processo de apropriação chega a ser antropofágico. É quando, por força de novos ventos ideológicos e epistemológicos, testemunhamos uma devoração e uma subversão dos elementos de um gênero para dar lugar a novas formas de pensar a Arte.
Só para exemplificar: conheço pelo menos dois filmes muito ousados esteticamente que subvertem fortemente o Western Hollywoodiano. Ambos são reconhecidos por seu impacto sobre esse gênero. São eles First Cow (2019), de Kelly Reichardt, e O ataque dos Cães (2021), de Jane Campion. Não por acaso, são filmes realizados por mulheres, ambas espremendo ao limite o mito do cowboy macho branco desbravador da América “selvagem”.
Todavia, não chega a ser esse o caso de O Bastardo (2024), de Nicolaj Arcel. Mas o filme não faz feio ao atravessar o Atlântico e realocar nos estéreis campos dinamarqueses as sagas mais clássicas do Western estadunidense. Para isso, Arcel conta com a presença magnética de Mads Mikkelsen, que responde com entrega sincera ao chamado à desconstrução do herói do faroeste para o Cinema contemporâneo.
O Bastardo é um épico do século 21
O Bastardo é uma adaptação do livro The Captain and Ann Barbara, de Ida Jessen. É terceira parceria entre Arcel e Mikkelsen. Ambos compõem juntos as fichas técnicas de outros dois bons filmes: O Amante da Rainha (2012) e Loucos por Justiça (2020). Em O Bastardo, eles retornam ao drama de época para contar a história da conquista, em meados do século XVIII, da terra do urzal dinamarquês: a indomada Jutlândia, uma região impossível de ser cultivada naquela época.
Assim, imediatamente nos vêm à mente os grandiosos épicos estadunidenses, aqueles que louvam homens corajosos diante do desafio de colonizar uma imensidão que, por puro oportunismo, eles consideravam inexplorada. No caso de O Bastardo, o urzal já havia derrotado os dinamarqueses inúmeras vezes, a ponto de o próprio rei deixar para os súditos a tarefa de se arriscar pelo grande nada.
Ser o urzal um desafio para os fortes e ousados torna O Bastardo num épico do século 21. Como os épicos tradicionais, está lá a conquista do desconhecido. Mas o conquistador desta vez paga um alto preço existencial por pretender ser o mais macho entre os machos.
Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen), oficial do Exército dinamarquês, é o macho em questão. Comparece para fazer sua tentativa, requerendo, em retribuição por seu sucesso, um título de nobreza e os privilégios a ele acoplados. E, talvez, a semelhança temática com os Westerns estadunidenses acabará por aqui. Pelo menos dois elementos nos informam os contrastes entre eles e O Bastardo.
Pequenos diante do infinito desconhecido
O primeiro elemento, e bastante evidente, diz respeito às dimensões físicas – e o que isso implica – em cotejo: a minúscula dimensão humana diante do infinito desconhecido. Nesse sentido, nos Westerns, a América desconhecida é sempre aquele horizonte longínquo, não raro à luz do pôr-do-sol. Esse cenário grandioso se oferece à conquista do macho branco, que pode até se situar lateralmente no frame, mas nunca estará apequenado, inseguro diante do imenso desafio que se propôs.
Entretanto, o urzal dinamarquês, objeto de disputa entre Kahlen e o senhor de terras Frederick De Schinkel (Simon Bennebjerg, que podia estar menos caricato), se apresenta na lente de Arcel não em sua grandiosidade, e esta nem parece ser importante para o diretor. O ponto de vista aqui é como os personagens são pequenos e vulneráveis diante não apenas do meio ambiente hostil. Aqui conta também a Dinamarca do século XVIII, aonde os ares do Iluminismo e suas ideias de igualdade e liberdade ainda não haviam chegado.
É aí que Kahlen se diferencia dos cowboys do outro lado do Atlântico. O que o motiva não é o pioneirismo corajoso diante da terra desafiadora. É um recalque de origem, uma pequenez também social, que o título do filme denuncia. Num tempo e lugar em que o status social define quem vive e quem morre, Kahlen encontra afeto apenas entre os indigentes, os abjetos: escravos fugidos, ciganos. Nesse sentido, O Bastardo se aproxima de obras que desconstroem modelos sociais, como os filmes de Hirokazu Kore-Eda e suas famílias acidentais. Alguns Westerns também exibem famílias assim, mas sem desconstruir a figura do macho onipotente e provedor.
O Bastardo e a desconstrução do macho
Essa desconstrução é o segundo elemento de O Bastardo. Ludvig Kahlen passa longe do cowboy típico, porque suas fragilidades estão sempre em questão. É notável seu sofrimento físico pelo trabalho pesado na terra e pelas tentativas lotéricas de encontrar alguma fertilidade no solo gelado. São evidentes sua frustração e seu sentimento de fracasso pela busca sobre-humana de alguma terra mais propícia ao plantio daquilo que é seu grande trunfo – interessantemente, um tesouro descoberto na América, e desconhecido na Escandinávia de então.
Similarmente, os erros cometidos por Kahlen também não são comuns aos faroestes tradicionais. Sua obstinação teimosa ocasiona uma série de infortúnios para si e para sua família. Realisticamente, sua condição social precária em nenhum momento recebe lenitivo, e me parece que isso não se deve apenas ao fato de que o personagem existiu na vida “real” e contribuiu para a expansão do território ocupado na Dinamarca.
Em O Bastardo, há evidências de que a intenção de Arcel é mesmo a de apequenar o protagonista diante de sua tarefa, oferecendo com isso a compensação de ele experimentar um crescimento pessoal que ao fim e ao cabo o tornará um ser humano um pouco melhor. E, sem dúvida, convenhamos, tornar-se um ser humano melhor não costuma compor o arco narrativo dos filmes de cowboy.
Além disso, o roteiro conta com um protagonismo feminino em momentos cruciais, o que é raríssimo aos Westerns tradicionais e contribui para reforçar ainda mais a fragilidade do protagonista, que já estava bastante patente em outros momentos do filme.
Conhecendo mais sobre a Dinamarca
Mesmo assim, Arcel compôs uma obra que chama a atenção não apenas pelo que deixa fora da caixa, mas também por seu dinamismo. Suas duas horas de projeção contam com nossa atenção constante, porque os acontecimentos se sucedem com uma fluidez atraente que não deixa espaços vazios na narrativa. O Bastardo foi o escolhido da Dinamarca para o Oscar de 2024, depois da vibe de Drunk, também com Mikkelsen, em 2021. Entretanto, mesmo se estivesse entre os finalistas, não haveria como conter a potência do colossal Zona de Interesse, de Jonathan Glazer, vencedor este ano.
De todo modo, O Bastardo vale o ingresso não apenas pela desconstrução da masculinidade onipotente, comum a filmes do tipo Western. Há também o despertar da curiosidade sobre a História da Dinamarca e da Escandinávia, revelando que mesmo o Velho Continente não foi sempre completamente domado. E, por fim, vale sempre a pena apreciar mais um bonito trabalho de Mads Mikkelsen, um ator sólido com um carisma impressionante e muitos fãs aqui no Brasil.
Direção: Nicolaj Arcel
Roteiro: Nicolaj Arcel, Anders Thomas Jensen, Ida Jessen
Edição: Olivier Bugge Coutté
Fotografia: Rasmus Videbæk
Design de Produção: Jette Lehmann
Trilha Sonora: Dan Romer
Elenco: Mads Mikkelsen, Amanda Collin, Simon Bennebjerg, Melina Hagberg, Kristine Kujath Thorp, Gustav Lindh