
Serpico | Dossiê Sidney Lumet
Serpico (1973)
Roteiro: Peter Maas, Waldo Salt, Norman Wexler
Elenco: Al Pacino, John Randolph, Jack Kehoe
Era uma vez, na longínqua cidade de Wirani, um rei que governava os seus súditos com poder e sabedoria. O povo o temia por seu poder e o amava por sua sabedoria.
No coração daquela cidade, havia um poço de água fresca e cristalina. Dela bebiam todos os seus habitantes e até mesmo o rei e os seus cortesãos, pois era o único da localidade.
Certa noite, quando todos dormiam, uma bruxa entrou na cidade e derramou sete gotas de um misterioso líquido no poço, dizendo:
— A partir de agora, quem beber desta água ficará louco.
Na manhã seguinte, todos os habitantes do reino, salvo o rei e o seu lorde camareiro, beberam do poço e enlouqueceram, tal como a bruxa havia predito.
E, naquele dia, nas ruas estreitas e nas praças do mercado, as pessoas não paravam de sussurrar entre si:
— O rei está louco! Nosso rei e o lorde camareiro perderam a razão. Certamente, não podemos ser governados por um rei louco. Devemos destroná-lo.
Naquela noite, o rei mandou que enchessem uma grande taça com a água do poço. E quando a trouxeram, bebeu da água abundantemente e entregou a copa ao lorde camareiro, para que do líquido também bebesse.
E houve um grande regozijo na longínqua cidade de Wirani, porque o seu rei e o lorde camareiro haviam recobrado a razão.
O conto “O Rei Sábio”, de Khalil Gibran Khalil, surge no meio de “Serpico”. Inesperada e inusitadamente, aparece longe das ruas e das frustrações do protagonista que dá nome à obra, ressaltando o deslocamento e a estranheza em um ambiente que o constrange. Isso é algo que une o personagem a tantos outros de Sidney Lumet, um diretor que aborda temas sociais e políticos e tem um apreço especial por filmes sobre a corrupção. “Serpico”, adaptação do livro homônimo de Peter Maas, conta a história real do policial Frank Serpico, desde sua entrada na corporação até sua principal ação contra o sistema imoral que se instaurou nos mais diferentes graus dos órgãos de segurança, passando por suas muitas tentativas de denúncia e um atentado contra sua vida.
Lumet não é direto, nem segue essa ordem. Ele escolhe começar por um tiro, pelo choque e pelo sangue, sem grandes detalhes. Dali, parte para a apresentação dos deveres de um policial. As imagens que se fundem vão fazendo sentido à medida que o flashback avança nas primeiras patrulhas do jovem e empolgado policial. Serpico não é alguém que se deixa conhecer rapidamente, nem por aqueles que com ele convivem, nem por aqueles que o observam. Sabemos de sua índole e de sua posição incorruptível, mas outros traços de sua persona vão se revelando aos poucos. Impaciente, machista e autocentrado, ele está longe de ser alguém perfeito, apesar de sua cruzada quixotesca contra o mal que assola a polícia há cinquenta anos e ainda existe, em Nova York ou em tantos outros lugares.
A humanidade do policial frustrado está em tela, comemorando sua entrada na força com a família, farreando com os amigos ou sendo um idiota com a namorada, assim como o cotidiano na delegacia e as patrulhas ou operações que o fazem conviver com os absurdos cometidos por colegas afastam qualquer possibilidade maniqueísta.
Al Pacino é fundamental na construção desse personagem complexo, que oscila entre a contenção e os rompantes de indignação, e marca sua incredulidade na própria postura. Ele está presente em quase todas as cenas, e, auxiliado pelo figurino de Clifford Capone, que o mimetiza à realidade de uma Nova York abandonada à própria sorte, deixa clara a sua rejeição ao próprio ambiente. É como se o transformar-se em um policial à paisana, afastando-se da farda, deixando o cabelo e a barba crescerem e assumindo a figura da cidade, o distanciassem daquilo que mais abomina, mas o que mais desejara ser um dia.
Lumet acompanha de perto essa transformação, dando bastante tempo a ela, sem privar o público das decepções. O insucesso de tantas tentativas, entre encontros escondidos e conversas privadas, torna o ritmo do filme desafiador, mas o diretor cria uma naturalidade ao se aproximar dos fatos narrados, causando no espectador um interesse genuíno naquilo que está assistindo. Atuação, ambientação e tempo controem um universo favorável para trazer à tela a confirmação de uma obra que faz do cinema a principal arma para falar da sociedade. Em um mundo onde a ética é variável e a moral inexistente, estar do lado certo pode não significar nada.
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Cecilia Barroso é jornalista e crítica de cinema. Além de atuar como curadora, esteve em mostras e festivais como júri, palestrante e debatedora. Ministra cursos sobre crítica cinematográfica e história do cinema. Participou como autora de diversas publicações, entre elas, “Mulheres atrás das câmeras: As cineastas brasileiras de 1930 a 2018”, finalista do Prêmio Jabuti. É integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema, da Federação Internacional de Críticos de Cinema, da Critics Choice Association, das Elviras – Coletivo de Mulheres Críticas de Cinema e votante internacional do Globo de Ouro. Acompanhe o trabalho de Cecília aqui.