ASSASSINATO NO EXPRESSO ORIENTE

Assassinato no Expresso Oriente | Dossiê Sidney Lumet

Assassinato no Expresso Oriente (Murder on the Orient Express, 1974)

Roteiro: Agatha Christie, Paul Dehn, Anthony Shaffer

Elenco: Albert Finney, Lauren Bacall, Ingrid Bergman, Vanessa Redgrave,  Jean Pierre Cassel 

O culpado é sempre o mordomo? Em histórias de crime e mistério, geralmente, a resposta é sim. Aqui, em “Assassinato no Expresso Oriente”, não seria diferente. Contudo, Agatha Christie, marota e sagaz, subverte esta lógica de um culpado e decide que não apenas o mordomo terá cometido o crime, porém todos os suspeitos também. Para completar esta dinâmica inventiva, Christie traz sua personagem mais famosa, Hercule Poirot, e a coloca dentro de um trem, infestado de assassinos, cúmplices na missão de matar um bandido sequestrador.

São inúmeras informações, contextos, camadas e detalhes colocados na história, tanto sobre o passado das personagens, como da própria execução do crime. Adaptar esta obra para o cinema foi o grande desafio dos roteiristas Paul Dehn e Anthony Shaffer, e do diretor Sidney Lumet, na versão cinematográfica de 1974. Em termos de enredo, há uma tentativa de inserção de todos os pormenores presentes na trama. Esta estratégia é a que chama mais atenção, porque é, principalmente, esta escolha que retira um tanto da qualidade geral do longa-metragem.

ASSASSINATO NO EXPRESSO ORIENTE AGATHA CHRISTIE

Sem seguir uma personagem específica, todos possuem a mesma importância dentro da produção. A ausência de um destaque é compreensível, porque é exatamente assim que ocorre no livro. No entanto, sendo este um filme, talvez o melhor fosse, de fato, focar mais em alguém ou em um dos casais, para que a própria compreensão sobre a execução do ato criminoso e das motivações para tal ação fossem captadas mais intensamente pelo público. Até mesmo o detetive Poirot parece dissolvido dentro desta dinâmica de tempo dividido em partes quase iguais.

Já em termos de direção, Lumet, ao lado de seu fotógrafo Geoffrey Unsworth, consegue criar uma atmosfera de sufocamento e tensão, através das escolhas de enquadramento, iluminação e ângulo. A movimentação fica mais contida é deixada para o trem – principalmente com recursos de som – e para o momento do assassinato – através das personagens. Este caminho cria um maior sentido visual de pouca mobilidade e espaço, que gera esta sensação sufocante, está na mise-en-scène. Abarrotando o ecrã, Lumet também coloca suas personagens diante da inércia,  da falta de chance de escapar da situação na qual se encontram.

Porque Sidney Lumet possuía também o desafio que era deixar nítido que a organização entre as personagens foi  planejada, mas que o controle foi perdido por todos, quando Poirot embarcou no Expresso Oriente. Neste sentido, o cineasta é inteligente ao se valer das angulações para, justamente, criar o que o roteiro não faz. Com a utilização tanto do posicionamento de câmera quanto do uso dos plongées e contra-plongées, é perceptível durante a sessão quais são as personagens que têm mais ou menos controle do crime e da execução dele.

ASSASSINATO NO EXPRESSO ORIENTE

Pierre (Jean-Pierre Cassel), pai em busca por vingança ao tirar a vida do assassinado no Expresso Oriente, por exemplo, está sempre em posição neutra, em termos de ângulo, revelando sua agência direta, mas discreta dentro do crime. Já Greta (Ingrid Bergman) é, majoritariamente, filmada em plongée, mostrando a sua fragilidade diante os acontecimentos pré e durante a história que se passa no filme. Neste sentido, ao se falar de Greta, também é possível destacar a atuação de Ingrid Bergman, que, assim como em todos seus trabalhos, apresenta uma construção consciente e coesa com relação à proposta da obra na qual está atuando.

Todavia, se não existe neste projeto uma diferença qualitativa entre este e seus papéis anteriores, há um ponto sobre a interpretação de Bergman a ser destacado. Este é um dos seus trabalhos mais corajosos e diferentes, por algumas razões. A primeira é que ela recorre aos olhos como foco principal sempre. No entanto, aqui, como Greta tem dificuldade em manter o olhar fixo em alguém, torna-se complexo que Ingrid Bergman olhe diretamente para a câmera ou, até mesmo, aposte neste recurso na contracena. Assim, este é um papel em que o jogo com a fisicalidade de seu corpo é mais nítido.

A postura curvada e os gestos semi-circulares com a cabeça reverberam na voz – uma das possibilidades de construção de personagens é o uso da transformação física ou ativação de uma parte específica do corpo para que as movimentações e a voz sejam modificadas, criando rapidamente um papel externalizado, porém eficiente em mudanças visualmente óbvias. Este recurso pode ou não funcionar, a depender de quem a utiliza e como. Ingrid Bergman sabe manipular esta tática e entrega a atuação mais elaborada do elenco.

ASSASSINATO NO EXPRESSO ORIENTE

Seguida dela, está a construção de Vanessa Redgrave como Mary Debenham. Dois elementos chamam atenção para seu trabalho. O primeiro é que a atriz é quem parece mais confortável na equipe de atores do longa. A sua ideia de optar pela leveza, aos invés da tensão, e da serenidade e não o da firmeza, garantem a ela esse destaque. Além disso, Redgrave maneja o colorido de seu texto para que a ironia e a dubiedade sejam postas em cena. Assim, há uma elaboração de camada mais profunda de sua personagem, e sua escolha afeta positivamente o próprio enredo.

É onde o roteiro mais falha em adaptar Agatha Christie que Redgrave se sai melhor. O não dito e o texto não verbal a serviço do estabelecimento do ar de mistério é convocado pela atriz, que parece compreender que, ao contrário do livro, que se vale de palavras conectadas para a junção de sentidos, o cinema é imagem e som. Recursos audiovisuais podem ser trazidos para entregar ao espectador o tom de mistério, que não imprime, de cara, o crime e as motivações.

O restante do elenco é mais frágil. Ainda que Jacqueline Bisset, por exemplo, consiga trabalhar bem com a dubiedade de sua condessa Elena, falta nela tônus e uma intenção mais demarcada. Seu papel parece conduzido pelos outros papéis, como se ela esperasse por uma certa contaminação de construção de sentido através da contracena. Todavia, seus colegas de cena apostam ou em uma suavidade exacerbada (Lauren Bacall e Sean Connery), na irritabilidade sem progressão (presentes nas figuras feitas por Wendy Hiller e Rachel Roberts) ou no exagero do uso do arquétipo (como na criação do Poirot, de Albert Finney), o que não ajuda.

ASSASSINATO NO EXPRESSO ORIENTE

É nesta questão de demarcação de intensidades de atuação e da compreensão do elenco sobre suas personagens, que falta algo ao “Assassinato no Expresso Oriente” de Sidney Lumet: o estabelecimento de empatia com as figuras dramáticas. Se a plateia não torce por ninguém, grande parte da graça de consumir um produto ficcional se esvai. É por este motivo que, apesar da direção inteligente e perspicaz de Lumet, falta ao filme um punch.  Esta é uma adaptação do livro homônimo de Agatha Christie. A produção merecia mais do que um material morno, entulhado de informação e pouca paixão.

Esta é uma história de amor, vingança e crime. É tudo, menos morna. Mesmo assim, é necessário finalizar esta crítica ressaltando a relevância da obra. A direção e o elenco tem nomes de peso, fazendo com que este título seja um exemplar histórico do cinema.

Encontre os demais textos do Dossiê Sidney Lumet em nosso editorial.

Enoe Lopes Pontes é Doutora em Comunicação e Cultura Contemporâneas, pela UFBA – com doutorado sanduíche na Alemanha – e mestra em comunicação, pela mesma instituição. Especialização em Direção em TV para teledramaturgia, pela CAL. Formada em Teatro, pela UFBA e em Jornalismo, pela Unisba. Desenvolve pesquisas nas seguintes área: estudos de fãs, recepção e consumo, gênero e sexualidade e ativismos de fãs. Crítica de Cinema, votante do prêmio Globo de Ouro. Tem experiência como júris e curadora de festivais de cinema, nacionais e internacionais. É membro da ABRACCINE e da Fipresci. Escreve para o Coisa de Cinéfilo e o Aratu On.

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