Aos pedaços

Última atualização: 15/02/2024

Há filmes que exigem muito do espectador, e há muitas formas que um filme pode assumir para nos fazer exigências. Dando dois exemplos: um filme pode nos exigir um repertório para entender suas nuances, referências e estética. Ele pode também, por outro lado, nos pedir cumplicidade, para que aguardemos que sua reflexão seja composta pouco a pouco na tela. “Aos Pedaços”, de Ruy Guerra, demanda ambas as coisas ao mesmo tempo.

aos pedaços

Desvarios em cena

“Aos pedaços” é um filme que se constrói aos poucos como um enigma, tentando se formar como um labirinto cinematográfico onde o real e o delírio se embaralham, evocando o simbolismo onírico de David Lynch, em especial “Cidade dos Sonhos” (2001), e a dissecação psicológica intensa de Ingmar Bergman.

A trama, escrita pelo próprio Guerra em parceria com Luciana Mazzotti, tem um ponto de partida simples e intrigante: Eurico Cruz desperta com um bilhete anônimo anunciando sua morte. A busca pelo responsável pelo bilhete o leva a um quebra-cabeça de espaços idênticos e personagens espelhados, que parecem existir entre a obsessão e a paranoia. O protagonista, dividido entre duas mulheres de aparências praticamente idênticas, encarna a figura de um homem em decadência, afundado em sua própria psique fragmentada. O que ele vê são fantasmas, mas também projeções de um ego que se desfaz.

Aos 93 anos, Ruy Guerra mostra-se ainda um dos mais ousados diretores em atividade, radicalizando suas experimentações narrativas e estéticas. A fotografia expressionista em preto e branco, assinada por Pablo Baião e premiada no Festival de Gramado, remete ao cinema clássico, memorando o contraste dramático do noir e a angústia visual da Nouvelle Vague. Os enquadramentos e a direção dos atores lembram o rigor existencialista de Ingmar Bergman, enquanto a distorção da realidade reforça a herança lyncheana da obra.

Um estudo de personagens e situações

Mas, para além do jogo formal, “Aos Pedaços” é também um estudo da masculinidade em ruínas. Eurico não é apenas um homem cercado por seus demônios, mas um reflexo de um tempo que já não lhe pertence. Sua identidade se dissolve entre lembranças e ilusões. Enquanto isso, o filme expõe a desconexão desse homem com o presente e sua luta desesperada para manter um controle que escorre por entre os dedos. Guerra constrói, assim, não apenas um thriller psicológico, mas um retrato onde o homem se torna fantasma de si mesmo.

Opaco, inquietante e sem concessões, o filme não oferece respostas fáceis. E também não se coloca no campo fértil da originalidade. Pelo contrário, vai fundo nas referências e auto referências, construindo aos pequenos passos um pesadelo filmado em alto contraste. Nos arrasta, assim, para um universo onde tudo se desfaz – tempo, identidade, sanidade. E, no fim, talvez reste apenas isso: a imagem de um homem desmoronando diante do espelho, em um tempo em que isso pode representar o próprio fazer cinematográfico. Depois que tudo já foi feito, depois que tudo se torna pós moderno na repetição de temas, referências e imagens, aí resta então só o espetáculo, feito para aqueles que não se incomodarem em vê-lo mais uma vez.

Estes estão hoje em dia tão raros.


Ficha Técnica
Aos pedaços (2020) – Brasil
Direção: Ruy Guerra
Roteiro: Ruy Guerra, Luciana Mazzotti
Edição: Daniel Garcia, Mair Tavares
Fotografia: Pablo Baião
Design de Produção: Cedric Aveline
Trilha Sonora: Fracktura
Elenco: Júlio Adrião, Emílio de Melo, Simone Spoladore

 

 

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