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Sobreviventes

Felizmente, aumenta o número de obras do audiovisual voltadas para a discussão racial. Felizmente também, a grande maioria delas incorpora os estudos mais atuais sobre racismo. Nesse sentido, essas obras são bem-vindas por trazerem, cada qual, novas perspectivas sobre um problema estrutural recorrente da humanidade, especialmente do Brasil. Algumas dessas obras situam-se no tempo atual das sociedades em relação a raça e racismo. Outras retornam a tempos passados para mostrar como era mais trágica ainda a condição das pessoas não-brancas em impérios enriquecidos com o trabalho escravo. “Sobreviventes” (2024) está neste último grupo.

Trata-se de uma obra póstuma. O diretor português José Barahona faleceu em novembro de 2024, quando se preparava para o lançamento de “Sobreviventes”. Trata-se, igualmente, de uma declaração de amor do cineasta ao Brasil, mesmo que a realidade histórica brasileira que o filme apresenta não seja das mais favoráveis. Ambientado no século XIX, quando o Brasil já era independente, “Sobreviventes” menciona um país jovem mas já viciado no crime e estruturalmente cindido em duas raças. Havia quem combatesse a escravidão, mas ainda prevalecia a ideia da manutenção de escravos como esteio da economia brasileira.

Sobreviventes João e Mendes

“Sobreviventes” não é um ponto fora da curva na carreira de Barahona. O cineasta entregou ao mundo obras eminentemente políticas, não raro articulando Portugal a Brasil. “Sobreviventes” retoma essa articulação propondo um espécie de experiência acerca de nossas identidades sociais: como nos comportaríamos racialmente se os componentes da civilização que sustenta e justifica a escravidão desaparecessem? Evidentemente, essa experiência já vem acoplada a algumas teses do diretor. Mas o espaço está aberto para que teçamos nossas próprias teses.

“Sobreviventes” e suas imagens-síntese

Sigo então por minha leitura do percurso proposto por Barahona. Um naufrágio obriga os sobreviventes de um navio que partiu da Bahia em direção a Portugal a buscarem uma praia inóspita para tentar sobreviver e buscar ajuda, se possível. O grupo é heterogêneo em termos de gênero, raça e classe. Essa heterogeneidade se destina à apresentação de uma imagem sintética de como muitos brancos, europeus e brasileiros, consideravam (e consideram, é preciso dizer) as pessoas escravizadas.

Para nos guiar materialmente em seu percurso, Barahona realizou seu filme em preto e branco, provavelmente por dois motivos. O primeiro seria o de manter nossa atenção nas ações e discursos dos personagens, sem que haja distrações visuais, por exemplo a que nos levaria, em vez de manter a atenção à trama, a contemplar a paisagem inóspita, porém belíssima, da Praia da Carriagem, em Portugal, locação do filme.

Sobreviventes praia

O segundo seria o de transformar a fotografia de Hugo Azevedo numa metáfora visual das relações baseadas na cisão social entre duas raças, a branca e a preta. Essa metáfora se repete no jogo de xadrez que o fidalgo português Fradique Mendes (Miguel Damião) ensina ao escravizado João Salvador (Allex Miranda). “As pedras pretas sempre perdem”, diz João, não apenas mencionando a realidade histórica de Brasil e Portugal, mas também prevendo o que o futuro, séculos depois, nunca logrou vencer.

Em “Sobreviventes”, cores opostas acentuam oposições raciais

Entretanto, as cores opostas não são o único recurso de Barahona para confrontar brancos e pretos. O roteiro, escrito por ele em parceria com José Eduardo Agualusa, em muitos momentos se estrutura por oposição. Diante da precariedade da situação dos náufragos, presos numa ilha aparentemente composta apenas de rochas, o escravizado João Salvador é o único dentre eles capaz de buscar alternativas de sobrevivência. Encontra água e caça os peixes que os sustentarão até que eles possam encontrar algo melhor. Porém, em vez de servir aos brancos, como se esperaria dele na civilização, João assume um outro lugar.

João pescando

Os brancos ricos acabam tendo de aceitar sua liderança, porque não têm a menor ideia do que fazer num contexto em que não estão sendo servidos por escravos. Até Fradique Mendes, o mais politizado deles, confessa ser totalmente inútil numa situação de busca por sobrevivência básica. A fragilidade física do grupo é acentuada pela angustiante trilha sonora de Philippe Seabra, que contou com os luxuosos vocais de Milton Nascimento. Aliás, só a trilha sonora já vale o ingresso.

As figuras maltrapilhas sob o sol escaldante reforçam a ideia da ilusão de qualquer convicção relacionada à ideologia da superioridade dos europeus sobre os habitantes de outros continentes. Sem os confortos da urbanidade, sem os pretos que só por caridade os amparariam, aquelas pessoas nada são.

Da sobrevivência para a vivência

Por outro lado, mesmo com a mensagem de que, fora do mundo civilizado, as oposições se invertem, Barahona deixa para o futuro uma possibilidade de um dia haver igualdade. Enquanto estão sujeitas à fome e à sede, desprotegidas na ilha deserta, não é possível a pessoas tão diferentes – mesmo que essa diferença tenha sido inventada – viverem juntas num mesmo lugar. Entretanto, quando se supera a necessidade de sobrevivência, que é o que num determinado momento do filme acontece, pode-se pensar em diferentes raças convivendo numa tentativa de harmonia, de comunhão.

Mesmo assim, Barahona não parece acreditar que no Brasil poderemos superar com facilidade essa necessidade de sobrevivência. No filme, ela só é conseguida quando pretos e brancos param de lutar entre si e começam a trabalhar juntos. Isso é, como sabemos, algo possível apenas pontualmente, porque estamos longe de operar o trabalho conjunto como possibilidade social estrutural. Ainda nos vemos como inimigos, brasileiros contra brasileiros.

grupo Sobreviventes

Barahona estava consciente dessa impossibilidade, de como está longe no horizonte a superação da chaga gigantesca de quase quatro séculos de escravidão. Mas seu filme traz pelo menos uma ideia de um caminho para o Brasil se tornar verdadeiramente uma nação. Não no sentido que a senhora de engenhos e traficante de escravos acredita que devemos ser. Mas, sim, uma nação que se reconhece metade preta, e que essa metade nos traz a potência capaz de superarmos a sobrevivência e enfim alcançar, todos os brasileiros juntos, uma vivência em plenitude.


Ficha Técnica
Sobreviventes (2024) – Portugal-Brasil
Direção: José Barahona
Roteiro: José Eduardo Agualusa, José Barahona
Edição: João Braz
Fotografia: Hugo Azevedo
Design de Produção: Nathy Fonseca
Trilha Sonora: Philippe Seabra, Milton Nascimento
Elenco: Miguel Damião, Allex Miranda, Anabela Moreira, Paulo Azevedo, Roberto Bomtempo, Kim Ostrowskij, Zia Soares

 

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