A hipnose

Cada vez me dedico mais a comparar filmes, estabelecendo critérios que me servirão para definir conceitos relacionados à arte e ao Cinema. Faço isso por puro prazer intelectual, mas também com o objetivo de poder descrever e analisar melhor os filmes sobre os quais escrevo. A Hipnose (2024), longa de Ernst de Geer em cartaz na Plataforma Mubi, é inspirador o suficiente para me motivar a um agradável exercício mental.

Assim, em meio a minhas comparações, compreendi que alguns filmes dedicam-se a desenvolver narrativas ocultas sob enredos aparentemente simples. São filmes que apresentam o que nos acostumamos a denominar camadas: não entregam ao espectador todos os seus significados em seu enredo. Há teias e fluxos subterrâneos que lançam pistas nos detalhes, nos contextos, nos figurinos, nas disposições de cena, na luz, nos movimentos de câmera.

apresentação

É nessas teias que o verdadeiro diálogo é proposto ao espectador. Evidentemente, nem sempre essa proposta é reconhecida, como acontece também na vida. Nem todo mundo dança com a gente quando a gente chama alguém pra dançar. De Geer emprega os 98 minutos de A Hipnose a nos convidar para dançar. Em seu convite, ele é generoso o suficiente para aceitar como partner quem só capturou uma das histórias que se propôs a contar.

A Hipnose é um filme que se desdobra em dois

Há filmes que pregam peças até em gente mais avisada, porque mantêm, sob a aparência enganadora de um enredo simples e direto, uma outra e mais complexa história. Os Banshees de Inisherin e Monster são assim. Mas, diferentemente de A Hipnose, esses filmes tornam empobrecida sua leitura quando o espectador não captura as histórias subliminares que contam. Em A Hipnose, há duas histórias sendo contadas, mas, se nos interessarmos apenas por uma delas, já terá valido a mensalidade da Mubi. Porque, nesse sentido, A Hipnose é um filme que se desdobra em dois.

Cada um deles é sobre um dos membros do casal protagonista, ambos empreendedores de uma startup em busca de financiamento. Há um primeiro filme, mais aparente, sobre Vera (Asta Kamma August), que, na iniciativa de parar de fumar, busca uma hipnoterapeuta e passa por uma sessão de hipnose. Logo após, o casal parte para um evento de exibição do seu aplicativo de saúde feminina para possíveis investidores. O impacto da experiência com a hipnose modifica o comportamento de Vera, que de início parece uma pessoa interessante para seus interlocutores, mas rapidamente passa de uma inconveniência para uma verdadeira ameaça ao sucesso da empreitada do casal.

a hipnose encontro com financiadora

O segundo filme, menos aparente, é sobre o outro membro do casal, André (Herbert Nordrum, conhecido do público por A Pior Pessoa do Mundo), que precisa se virar como pode para garantir a participação da dupla no evento e de alguma forma obter financiamento para seu projeto.

Mais de uma leitura possível

Não será menos relevante à experiência de assistir a A Hipnose se o espectador considerar que o filme trata do embate entre as ações de Vera e os freios e regulações sociais que nos obrigam a abrir mão da espontaneidade, às vezes amputando nossas partes mais interessantes, para sermos aceitos pelas pessoas e obtermos sucesso em nossos projetos.

Porém, numa perspectiva de estrutura da narrativa, André é que é o grande protagonista de A Hipnose. Ele é que se encaixa na definição de que o protagonista é aquele que começa na história com uma situação estável, tem sua estabilidade quebrada por um evento específico, e passa o tempo restante buscando recuperar essa estabilidade, tornando-se ou não uma pessoa diferente ao longo do processo.

cena jantar

Nesse sentido, A hipnose é um filme convencional na sua configuração cronológica. Todas as partes que eu apresentei no parágrafo anterior se apresentam em sua sequência, sem percalços ou interrupções. Apresentam-se alguns detalhes que serão retomados ao longo da história. O objetivo dessa configuração é notarmos como os acontecimentos vão provocando mudanças nos personagens e em suas ações.

Afirmei, logo acima, que um filme interessante se compõe de camadas. Nesse sentido, a história de André seria uma segunda camada em A hipnose, desencadeada justamente pela história de Vera, que é o elemento desequilibrador da harmonia em que André vivia antes da fatídica sessão de hipnose.

A terceira camada

Mas há ainda uma terceira camada em A Hipnose, que articula o casal central no filme e o torna, mais do que uma obra bastante interessante, uma obra bela, com um final belo, cheio de esperança de possibilidades de um mundo melhor. Um mundo belo e justo como o pensado pelo casal ao montar seu projeto de saúde pública para mulheres em países vulneráveis.

a hipnose cena Vera

Nesse mundo, os homens são capazes de se transformar, transformar seu pensamento e suas ações para serem verdadeiros companheiros de suas mulheres. São capazes de compreender quando elas precisam deles e de estar junto com elas nesses momentos. Podem reconhecer os momentos em que elas os convidam a uma vida mais verdadeira. Uma vida que seja diferente daquela vivida em função da aprovação de outras pessoas e da sociedade. É recusar a cabeceira da mesa para abraçar sua companheira.

Dessa forma, o arco narrativo de André é a desconstrução de seu lugar de privilégio, mesmo num país avançado como a Suécia. É esse chamamento para uma nova masculinidade, que dá a mão às mulheres para todos juntos mudarem o curso da História, como bem disse o Gil. Até porque, segundo um dos personagens do filme, e eu tendo bastante a concordar, num mundo em que não já justiça de gênero, é melhor mesmo que ele seja destruído.


Ficha Técnica
Hypnosen (2024) – Noruega, Suécia
Direção: Ernst de Geer
Roteiro: Ernst de Geer, Mads Stegger
Elenco: Herbert Nordrum, Asta Kamma August, Julien Combes, David Fukamachi Regnfors, Andrea Edwards

 

 

 

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