Os banshees de Inisherin

Última atualização: 20/04/2023

Entre 2010 e 2011, passei um período estudando no sul da Inglaterra. Para isso, aluguei um dos cômodos do flat de uma adorável e alegre senhora irlandesa chamada Siobhan (pronuncia-se Shivón) Kennedy. Passamos horas agradáveis e inesquecíveis conversando, comendo e, eventualmente, bebendo, coisas que os moradores das ilhas do Mar do Norte apreciam imensamente. Às vezes, nossas conversas incluíam comparações entre brasileiros e irlandeses. Tais comparações estiveram em minha memória enquanto eu assistia a Os banshees de Inisherin, de Martin McDonagh, que a meu ver é o melhor filme da temporada do Oscar 2023. O filme já está disponível na plataforma Star+.

De todas as comparações que ambas fazíamos, a que mais me marcou foi a convicção de minha amiga de que nós e os irlandeses queríamos basicamente a mesma coisa. Queríamos viver tranquilamente nossa vida e beber nossa cerveja sem criarmos guerra com outros países. Naquela época, eu também estava convicta dessa característica. Mas isso foi antes da primavera árabe, dos protestos de 2013, da emergência do palhaço fascista do programa da Luciana Gimenez, do golpe de 2016, da prisão de Lula, das eleições de 2018, da pandemia…

os banshees de inisherin Colm e Padraic cerveja

Nada sabíamos sobre o que fermentava nos subterrâneos cognitivos e sociais do mundo, que o movimento de placas tectônicas acabou cuspindo para fora, como pragas que o planeta já não quer. Se viva ainda estivesse, Siobhan praguejaria indignada com a xenofobia, o racismo, o neonazismo e a ignorância das classes médias que pelo mundo elegem, ou quase elegem, na melhor das situações, ditadores que perseguem minorias como cortina de fumaça para sua própria corrupção e para a revogação de direitos sociais e trabalhistas.

Os banshees de Inisherin é uma fábula não prototípica

Os banshees de Inisherin traz entre suas muitas qualidades o fato de ser uma fábula estruturada como obra cinematográfica. Uso o termo fábula aqui de maneira menos prototípica do que se costuma usar. Fábulas normalmente são narrativas com animais que falam e interagem em situações cotidianas, construindo uma distopia com lição de moral/ética ao seu final.

Contudo, no filme não há animais falantes, embora eles tenham participação afetiva relevante na vida dos personagens. O que há de natural são as espetaculares falésias na costa da fictícia Inisherin, ilha que serve de lar aos personagens. Não há um padrão narrativo pronto em que o filme se encaixe perfeitamente. Isso faz com que muitos analistas se limitem a reproduzir seu enredo: amigos de longa data, que passavam as tardes fazendo o que minha amiga Siobhan descrevia, de repente, não mais que de repente, entram em conflito porque um deles rompeu a amizade.

Entretanto, a maioria dos analistas para por aí.

os banshees de inisherin Siobhan

Sem dúvida, é um deleite ver juntos Colin Farrell (Padraic) e Brendan Gleeson (Colm), ladeados pelos não menos brilhantes Kerry Condon (Siobhan, xará de minha amiga) e Barry Keoghan (Dominic). Mas é claro que isso não é suficiente para tornar Os banshees de Inisherin o melhor filme da temporada. Também não basta dizer que essa história é contada com delicadezas de humor cotidiano.  Há algo no subsolo.

Os banshees de Inisherin é um filme sobre violência social e histórica

Como fazia na companhia de Siobhan, assisti a Os banshees de Inisherin fazendo cotejos com a sociedade brasileira. Me vieram à mente as cidades do interior do Brasil, algumas também periferia da periferia, assim como Inisherin. Sobre as cidades do interior brasileiro, temos sempre a ideia romanceada de seus habitantes cordiais, gentis, amáveis, acolhedores, em contraste com a rude truculência das cidades. Não sabíamos que nossa pretensa cordialidade escondia também um ódio profundo de raça, classe e gênero, capaz de nos cindir como nação.

Essa ideia nos impede de observar nessas cidades também a misoginia, o racismo, o estupro, o abuso de crianças, a gravidez em tenra idade, o trabalho escravo, a dominação do macho opressor branco e rico. Assim como em Inisherin, paramos encantados com a paisagem e a simplicidade de quem só quer tomar sua cerveja no fim da tarde com os amigos e saber das fofocas do dia. Mas a violência praticada e não vista está lá, e não se apaga mesmo quando naturalizada e aceita como parte da paisagem.

 os banshees de inisherin Padraic e Dominic

A par da violência social que o filme mostra sob as placas tectônicas firmes no lugar e sem o menor sinal de tremor, há também a violência histórica que corre subliminarmente na narrativa e emerge, como fábula, no fim da amizade entre Padraic e Colm. Colm não quer mais beber sua cerveja à tarde com Padraic porque entendeu que precisa viver os anos que lhe restam a serviço da poesia. Nada mais apropriado e pleno de sentido numa terra que já deu ao mundo três Prêmios Nobel de Literatura.

O simplório Padraic passa o filme inconformado com a decisão de Colm, mas, assim como todo macho contrariado, em nenhum momento se propõe a compreender quais são de fato as motivações do ex-amigo.

E quando não cabemos no lugar onde nascemos?

Na contrariedade de Padraic se imprime a violência de uma terra onde está tudo bem quando estruturas historicamente consolidadas permanecem inabaladas. Entretanto, na forma como Colm sustenta sua decisão definitiva, também está a violência dos que são obrigados a se manifestar de maneiras extremas. E isso não raro representa violência auto-infligida.

Não vender barato sua tese é outra característica que torna o filme uma obra diferenciada. Em contrapartida, Martin McDonagh tem boa vontade com o espectador e lhe espalha algumas pistas sobre o significado universal e contemporâneo do filme. Nele, alguns personagens manifestam sua perplexidade sobre a guerra na ilha principal, que de longe testemunham. Não compreendem como pessoas que vivem num mesmo lugar podem guerrear.

os banshees de inisherin Colm e Padraic

Essa incompreensão pode vir provavelmente do fato de que elas apenas observam o mundo em suas camadas mais epidérmicas. Justamente a camada das relações de polidez maquiada que muitas vezes temos de aguentar para suportarmos a vida em sociedade. O problema acontece quando pessoas como Colm, e também Siobhan e também Dominic, de alguma maneira, penetram para além da crosta, se assustam com o que vêem, e temem o que está lá represado, reprimido.

O que causa horror ao espectador menos capturado pela história aparentemente simples de Os banshees de Inisherin não é apenas a violência que corre solta, sem freio, sob o cotidiano daqueles ilhéus de sotaque divertido e nenhuma ambição. Com efeito, também pode ser a falta de perspectivas e de futuro que uma vida sem arte e sem poesia impõe.

Os canalhas não suportam poesia

Apenas por uma questão quantitativa é que a epifania de Colm, Siobhan e Dominic não causa um racha, uma polarização que eles veem e ouvem de longe, na ilha principal. Mas ela é suficiente para abalar estruturas microssociais. Isso acontece nas relações de Padraic, que segue sendo boçal enquanto seus interlocutores mais próximos já estavam de olhos bem abertos.

No entanto, num plano social mais amplo, essas transformações de pensamento são como água batendo nas comportas da represa. Pouco a pouco podem fazer com que pessoas de mesma nacionalidade se matem, se envolvam em guerra civil.

McDonagh constata, ao fim do filme, a impossibilidade de outro estado de coisas que não seja este que temos. Para ele, minha amiga estava parcialmente certa: não temos inimigos fora de nossas terras. O que ambas não sabíamos é que nossos inimigos somos nós mesmos. Porém, ao construir sua história como fábula, a moral que o diretor propõe é o resgate da alma artística e poética da Irlanda.

poesia

Ainda não abandonei o hábito de comparar: isso talvez poderá ser um caminho interessante também para o Brasil.

Portanto, enquanto não nos curarmos da doença de não nos reconhecermos como iguais, o que nos resta é fazer poesia, como ensina a charge de Rafael Correia. Porque a poesia é uma força tão gigantesca que compensa com folga os sacrifícios de que somos capazes para mantermos sua chama viva dentro do nosso coração.


Ficha Técnica
The banshees of Inisherin  (2022) – Irlanda, Reino Unido e Estados Unidos
Direção: Martin McDonagh
Roteiro: Martin McDonagh
Edição: Mikkel E. G. Nielsen
Fotografia: Ben Davis
Design de Produção: Mark Tildesley
Trilha Sonora: Carter Burwell
Elenco: Colin Farrell, Brandan Gleeson, Kerry Condon, Barry Keoghan

 

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