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Adolescência

Última atualização: 25/03/2025

Esta resenha traz muitos spoilers sobre a série “Adolescência” (2025), incluída na plataforma Netflix.

Tentando conversar com surdos

Numa escola de ensino fundamental, um pai e seu filho adolescente, um dos alunos, reúnem-se numa sala vazia para uma conversa particular. O filho começa a explicar ao pai ideias importantes. Contudo, este, não entendendo o que seu filho diz, perde logo a paciência e atropela sua fala. Por consequência, o filho se exaspera também, o diálogo fica difícil. Finalmente, reconhecendo a relevância do que o filho dizia, o pai consegue ouvi-lo. Depois que a conversa termina, já junto com sua colega de trabalho, o pai admite: “foi a conversa mais longa que tivemos em anos”.

A meu ver, esta cena resume uma das teses importantes da série “Adolescência”, sucesso instantâneo, e com razão, da Netflix. Estão também (logo abaixo desenvolvo mais esse “também”) na família nuclear algumas das causas dos crimes de ódio cometidos por adolescentes de diferentes raças e classes sociais, em países de diferentes condições econômicas. A conversa entre o detetive Luke Bascombe (Ashley Walters), o supostamente adulto na sala, e seu filho Adam (Amari Bacchus) revela não apenas uma simetria de papeis sociais, mas também diferentes disposições de escuta.

adolescência adam e seu pai

Na cena, a má vontade em escutar vem justamente de onde não deveria vir. Vem do mais velho, daquele que precisa escutar primeiro, mostrar-se aberto à fala do mais jovem, para que ambos possam olhar para os mesmos objetos conceituais. Mas não é isso o que acontece. Na maior parte do tempo, Adam tentava conversar com um surdo. Não que isso seja raro. Quase todo mundo pensa que cabe aos adultos falar, e aos mais jovens calar-se e ouvir. Eles até podem ficar quietos. Contudo, isso não significa de forma alguma que estejam escutando. O problema é que não serem ouvidos faz com que eles percam toda a vontade de falar.

Velhos valores não cabem mais – se é que um dia couberam

Luke Bascombe não é o único pai a rever seu comportamento. Na dilacerante sequência final de “Adolescência”, outro pai, Eddie Miller (Stephen Graham, um gigante) avalia suas ações junto com a esposa Manda (Christine Tremarco). Eles fazem isso ainda estarrecidos com o crime cometido por seu filho Jamie (Owen Cooper, surpreendente), que um ano antes desestruturou para sempre a família. Ambos reafirmam para si mesmos como foram bons pais, como cumpriram seus deveres. E como tentaram não repetir, como pais, os maus bocados que passaram como filhos. Para eles, isso parecia ser uma garantia de felicidade familiar e filial. Não foi.

Esta é a segunda tese de “Adolescência”: os valores familiares tradicionais, se é que um dia couberam em algo, não cabem mais no mundo hiperconectado da contemporaneidade. Sem dúvida, novas premissas, crenças, vigilâncias, limites e papeis paternos e filiais precisam se estabelecer. Porém, antes de partirmos para criar valores pertinentes ao novo tempo, precisamos enxergar com precisão a realidade caleidoscópica do mundo dos adolescentes. Eles têm se alienado das relações presenciais e se aninhado massivamente nas relações remotas e virtuais. Com isso, perdem a capacidade de enxergarem a si mesmos sem ser pelo filtro do olhar imaginário das outras pessoas.

polícia Jamie Adolescência

“Adolescência” põe o dedo na ferida dos efeitos trágicos dessa alienação. Ela afeta pessoas jovens demais para reunirem condições argumentativas e emocionais que as possibilitem enfrentar o julgamento das redes sociais. Este, por sua vez, está cada vez mais violento e covarde, por não precisar ser feito frente a frente, cara a cara. E violência, bem sabemos, pode sempre produzir mais violência.

A excelência na forma técnica e na atuação

Muitos críticos louvam a opção pelo plano-sequência contínuo (infelizmente a Netflix não informou o responsável pela edição da série), que faz mais do que inserir o espectador na cena, como um observador a se aproximar de cada personagem, cada qual por sua vez. Para quem maratonou a série, essa dinâmica de câmera pode criar um padrão de expectativa para o espectador. Diante de um diálogo, ele pode não apenas observar com atenção o personagem que está em foco. Pode também prever como se comportará seu interlocutor, que receberá o foco em seguida.

Esse recurso é particularmente significativo no terceiro episódio da série. Nele, na quase totalidade do tempo, Owen e a psicóloga Briony Ariston (Erin Doherty) confrontam-se com periódicas trocas de posição em termos de poder e domínio um sobre o outro. O jogo de câmera é fundamental para o episódio que, numa análise técnica, pode ser considerado uma verdadeira capoeira entre os personagens. É um jogo em que eles buscam todo o tempo manter o poder consigo ou tomar o poder do outro, cada um com as armas que tem. No caso de Jamie, a intimidação física. No caso de Briony Ariston, a capacidade argumentativa.

Briony e Jamie Adolescência

Entretanto, o jogo de câmera não é o único elemento das cenas a nos encantar e assombrar. As atuações também têm sido louvadas pelos críticos. Todos, em especial, elogiam o estreante Owen Cooper na construção de um personagem jovem mas não pouco complexo, em processo progressivo de compreensão de sua real situação e sua real responsabilidade sobre os acontecimentos que o afetarão para a vida toda. Igualmente, e num outro polo, o veterano Stephen Graham, também criador e co-autor do magnífico roteiro da série, se instala definitivamente no seleto grupo dos grandes atores britânicos, tornando-se merecidamente conhecido do grande público mundial.

As causas da violência de gênero não estão nas pessoas

Contudo, “Adolescência” tem seu maior acerto em sua terceira tese. A saber, a que recusa definir uma fonte individual e atomizada para suas questões. É, aliás, a explicação preferida no mundo capitalista. Nisso, a série se diferencia de muitas produções estadunidenses. Estas, em função das ideologias fundadoras de seu país, mantêm sempre no indivíduo a explicação para os fatos apresentados.

Cito, por exemplo, o filme estadunidense “A ordem“, de Justin Kurzel (2o24), da Amazon Prime. O filme narra a investigação e perseguição de um líder neonazista no coração do país. “A ordem” recusa a oportunidade absolutamente necessária, em tempos atuais, de discutir o ressurgimento de grupos neonazistas no Ocidente. Assim, perde a chance de evidenciar um sintoma de uma doença civilizatória de caráter pandêmico, chamada racismo estrutural. O argumento usado mais de uma vez para justificar as ações do líder nazista é a de que ele culpa os outros por infortúnios do passado. Ou seja, de novo o foco explicativo no indivíduo, e não nas dimensões históricas e sociais que enraízam coletivamente o preconceito de raça.

prisão Jamie

Diferentemente, “Adolescência” escapa dessa armadilha com brilhantismo. Escapa também da armadilha de patologizar o comportamento de Jamie. No terceiro episódio, o que obriga a psicóloga a encerrar a sessão com Jamie é uma fala dele que em outras produções menos corajosas poderia passar como manifestação de doença mental. Entretanto, fica evidente que seu horror provém da velha misoginia de sempre, que, agora materializada e disseminada pelas redes sociais e seu indefectível culto à imagem, foi capaz de operar uma mudança de valores tal, que tornou a humilhação pública nas redes algo ainda mais grave e trágico do que a morte de alguém. Morte, aliás, para a qual os alunos da escola onde estudavam algoz e vítima não dão a menor importância.

“Adolescência” focaliza nos homens suas questões

Outra coragem da série foi a de estabelecer seus acontecimentos e estados de coisas em torno dos homens, o que poderia melindrar os movimentos feministas, por desviar das mulheres o protagonismo numa produção sobre feminicídio. Nesta ordem, Luke Bascombe, Jamie e seu pai ocupam o centro dos três episódios finais, e, nesse sentido, resta-nos imaginar que significados isso pode trazer.

A meu ver, a ideia da série é expor como os efeitos da misoginia estrutural e massiva alcançam os homens. E, similarmente, também perguntar como as diferentes gerações de homens estão conseguindo (ou não) pensar e agir sobre uma violência geral e instalada. Tal violência permanece firme e vigorosa, mesmo com a construção de discursos e ações dos movimentos feministas, que clamam por uma outra construção de mundo, outra humanidade não fundada sobre a opressão de uma metade sobre a outra.

homens em cena adolescência

Em que medida, e com quais bases conceituais, os homens se permitem afetar-se pelos novos tempos que os feminismos os convidam a inaugurar? E mais, digo eu: quantas mulheres ainda morrerão antes que os homens que odeiam as mulheres se deem conta de que um mundo de práticas e ideias misóginas apenas causará morte, em todos os sentidos que essa palavra pode assumir?

“Adolescência” é uma série espetacular

É no mínimo um alívio que a série dirija seu problema para a conta da sociedade que construímos, sem individualizar, o que a tornaria mais uma das milhares de obras genéricas sobre o tema. Nesse sentido, achei impressionante como eles apresentam a produção de significados misóginos mesclada à cultura da imagem que a internet instalou na mente das pessoas, a ponto de inverter e esvaziar, de forma assustadora, estruturas civilizatórias fundamentais relacionadas à manutenção da vida humana.

Igualmente, ao contrário de muitos colunistas que li e ouvi, a questão que a série propõe para reflexão é muito maior do que supostas reações ao feminismo, ou as relações entre pais e filhos no ocidente atual. O que se tem ali é como a misoginia de sempre se ajustou com perfeição e se manifesta sem resistência na cultura e na sociedade contemporânea, afetando de maneiras destruidoras meninas e meninos desde tenra idade.

cena final Adolescência

Portanto, todos esses feitos tornam “Adolescência” a melhor série do ano até agora. Sinceramente, acho difícil fazerem algo melhor. Claro que sempre tenho esperanças disso, porque assim nós espectadores só ganhamos. Mas, nossa, que espetáculo.

Leia no Longa História resenhas sobre obras que discutem violência de gênero: Querida Alice, A Noite do Dia 12.

Leia aqui também a entrevista com Stephen Graham, ator, roteirista e produtor, e com o elenco de “Adolescência”.


Ficha Técnica
Adolescência (2025) – Reino Unido
Direção:
Roteiro: Stephen Graham, Jack Thorne
Fotografia: Mathew Lewis
Design de Produção: Adam Tomlinson
Trilha Sonora: Aaron May, David Ridley
Elenco: Owen Cooper, Stephen Graham, Ashley Walters, Christine Tremarco, Amelie Pease, Erin Doherty, Faye Marsay, Amari Bacchus

 

 

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