A noite do dia 12
Última atualização: 21/07/2023
Ao longo de toda a projeção de A noite do dia 12, talvez a cena mais inteligente oferecida por seu diretor Dominik Moll seja a que abre o filme. Nela, Moll propõe ao espectador um diálogo que só pode travar com quem já se iniciou na (mais do que gostaríamos) lenta construção da consciência de gênero após milênios de patriarcado misógino e feminicida.
Presenciamos uma festa de despedida do chefe da delegacia de homicídios de Grenoble, cidade incrustada nos espetaculares Alpes franceses. Os espectadores mais atentos perguntam por que não há uma única mulher entre os policiais inicialmente enquadrados. Apenas após alguns discursos um tanto ébrios é que a primeira mulher aparece. Mas o espectador com consciência de gênero não fica aliviado, porque elas são a absoluta minoria entre eles. Eu contei apenas duas.
Assim, de partida Dominik Moll nos dá a informação mais importante sobre A noite do dia 12. É um filme sobre homens. É dirigido e roteirizado por homens, tendo Pauline Guéna como honrosa exceção. Apresentará a perspectiva masculina do fato central que aborda, e também da maneira como os personagens lidam com suas ações e reações dentro da trama.
Porém, mesmo com alguns problemas, A noite do dia 12 é um filme honesto, fiel e coerente com a realidade social que pretendeu retratar.
O problema de A noite do dia 12 é a obviedade
Provavelmente, essa coerência contou como fator para que A noite do dia 12 este ano tenha sido o grande vencedor do César, maior prêmio do cinema francês. Em função dela, podemos considerar pertinente que a maior parte da investigação do cruel assassinato da jovem de 21 anos Clara (Lula Cotton-Frapier) tenha sido conduzida por homens.
Na observação da dinâmica entre eles, emergem as contradições provocadas por um discurso que se impôs por sua absoluta pertinência e propriedade, diante da dificuldade gigantesca dos homens de modificar seu pensamento em favor dele.
De certa forma, o observador já letrado na consciência de gênero fica preparado para o que pode trair a boa intenção daqueles homens em desvendar o crime e prender o assassino. Posso dizer que, no coletivo, os policiais de A noite do dia 12 gabaritam o bingo da misoginia, mesmo que individualmente se esforcem para mostrar alguma educação. Isso faz parecer que a tese do filme é a de que os homens, quando se juntam, se tornam menos civilizados. Porém, evidentemente, isso não passa de desculpa.
Moll desenvolve essa tese e diálogo com os já iniciados no letramento de gênero de maneira bastante óbvia. A começar pela desagradável visão do corpo descoberto de Clara em meio à praça. A imagem, provavelmente pensada para denunciar a falta de respeito dos policiais com as mulheres, é reapresentada algumas vezes no filme, o que abre espaço, como já sugeri nesta crítica, para o fetiche de incels.
A noite do dia 12 e a didática de gênero
Seguem essa linha os diálogos dos policiais entre si e as cenas em que policiais interrogam mulheres. Nesses casos, respinga a misoginia às vezes explícita, às vezes não. A explicitação assume uma forma didática, provavelmente para educar os homens sobre discursos misóginos acerca de mulheres que sofrem violência.
Em duas cenas, o mesmo policial, o protagonista Yohan Vivès (Bastien Bouillon) interroga Nadia (Mouna Soualem), amiga de Clara, e, depois, interroga Nathalie (Camille Rutherford), companheira de um dos suspeitos. Em meio às perguntas de Vivès sobre a vida amorosa de Clara, Nadia perde a paciência e escancara o machismo do policial. Vivès joga sobre a vítima a culpa de ter sido morta, repetindo a mesma ladainha moralista que já na década de setenta do século passado tinha lugar absoluto, como relata o excelente podcast Praia dos Ossos, que narra o assassinato da mineira Ângela Diniz.
Na segunda cena, o mesmo Vivès projeta sobre Nathalia, companheira de um homem violento, a pressão de denunciar o marido, e insinua uma cumplicidade sua por não ter medo de morar com um homem assim. Diferentemente de Nadia, Nathalia silencia, mas seu olhar serve como mais uma lição de letramento de gênero.
A misoginia assume muitas formas
Não vou seguir adiante com os exemplos, mas aqui e ali Vivés e outros personagens masculinos, na presença e na ausência de mulheres, são misóginos de diversas formas. A obviedade como as situações acontecem sugerem a intenção de Moll de ensinar (só aos homens, espero) que certas atitudes não podem mais se repetir.
Contudo, essa aula de civilidade não acontece sem pelo menos um escorregão. Ele acontece com o veterano Marceau (Bouli Lanners), com a vida bagunçada pelo processo de divórcio da mulher que não conseguiu engravidar. O problema é que sabemos da história de Marceau apenas pela perspectiva dele, que é uma perspectiva daquele que deixou de ser servido e passou a servir.
Ou seja, Marceau não consegue superar o padrão autoritário da relação entre homens e mulheres, tarefa que o feminismo assume e para a qual convida homens e mulheres, no caminho de construir uma humanidade melhor.
Preciso salientar que Vivès até faz um esforço em desaprender algumas práticas. Tanto que é na presença dele que se profere a melhor frase no filme: “Clara morreu porque era uma garota”. Mas é decepcionante que, ao fim, a ideia remanescente é a que acompanha a divulgação do filme. A saber, a de que todo policial é assombrado por um caso mal resolvido, e a morte de Clara é o caso de Vivès.
No fim, o que resta é o que é possível
Em sua duração, o filme menciona essa ideia uma vez. Entretanto, a recorrência de cenas em homens agridem mulheres de diferentes maneiras revela que se trata mesmo de um filme de denúncia do machismo. Mas isso não destaca A noite do dia 12 como obra de arte. Já há muitos filmes afirmando que os homens desejam que as mulheres os sirvam, mas mesmo assim eles as matam. As matam quando elas os servem, e as matam quando elas não os servem. As matam porque, para eles, elas não passam de propriedade.
Como um todo, A noite do dia 12 deixa uma sensação de meio caminho andado. Já se aprendeu muita coisa, mas há muito o que aprender. Para mostrar isso, a insistência de muitos homens em permanecer inertes é confrontada com pensamentos e ações que poderiam estar no lugar disso.
Em resumo, o que Moll realiza como obra também sugere que o que os homens fazem é o que lhes é possível agora. Mudar mentes é difícil, os homens caminham devagar, tropeçam inúmeras vezes, mas talvez haja esperança.
A questão é quantas mulheres morrerão até que eles aprendam alguma coisa.
Alguns textos do Longa História sobre temática de gênero:
Querida Alice, Nossa bandeira é a a morte, Blonde, A amiga genial, A filha perdida, Minding the gap.
Direção: Dominik Moll
Roteiro: Pauline Guéna, Gilles Marchand, Dominik Moll
Edição: Laurent Rouan
Fotografia: Patrick Ghiringhelli
Design de Produção: Michel Barthélémy
Trilha Sonora: Olivier Marguerit
Elenco: Bastien Bouillon, Bouli Lanners, Théo Cholbi, Mouna Soualem, Pauline Serieys
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