Amor e outros dramas

Última atualização: 17/06/2023

Já começo dizendo que assisto a doramas coreanos na Netflix desde o início da pandemia de COVID-19. Acompanhar os problemas que acontecem no outro lado do mundo me fez suportar assistir à não-gestão que caracterizou a política federal brasileira para a doença, entre outras mazelas. Não tenho o menor problema nem vergonha em ser uma intelectual e gostar de doramas.

Sem dúvida, cultura popular nunca foi sinônimo de coisa ruim. Coisa ruim é a linha de montagem patrocinada pelo agronegócio, que produz, a partir de um mesmo padrão musical (empobrecido, grosseiro), uma série de duplas, todas fisicamente indistinguíveis, que berram sem nenhuma poesia letras misóginas em rádios compradas por latifundiários.

A produção de ficção coreana é gigantesca. Por isso, um dia ou outro surgem trabalhos diferenciados, sob a mesma linha de humor leve e drama rasgado que é marca registrada da indústria audiovisual daquele país. Mas esse humor e esse drama não podem de jeito nenhum ser tomados como simplórios ou banais.

drama amigos

No texto de Amor com fetiche, eu já havia identificado essa leveza que cobre a abordagem de questões que em muito superam o trivial. Em Amor e outros dramas, o mesmo acontece. Contudo, há alguns bônus a mais, como efeito da duração da obra – vinte episódios, quatro a mais do que o usual para doramas. O resultado é entretenimento de qualidade para quem quer escapar um pouco da realidade brasileira. E ainda pensar um pouco na própria vida.

Histórias nada extraordinárias

A proposta da série é a de abarcar momentos importantes da vida de personagens de diferentes gerações. Isso favorece a presença de atores veteranos, muitos já queridos dos fãs de doramas, ao lado de novos rostos. O local é a Ilha de Jeju, ao sul da Coreia, que na série se marca pela vida simples e tranquila, embora a diminuta dimensão do país a torne relativamente perto de grandes centros urbanos e da capital Seul.

O elenco central se compõe de amigos de adolescência enfrentando os desafios da maturidade. Há também personagens “forasteiros” que optam por morar na ilha, mesclando suas histórias às dos que ainda vivem cultivando os costumes e tradições do lugar.

Byung-Hun

Não há eventos extraordinários em Amor e outros dramas. Tampouco há personagens diferenciados das pessoas com quem temos contato no cotidiano. Mas é essa a grande delicadeza da série: às questões pessoais de cada um é dada uma importância que lhes confere distinção, singularidade. Isso nos permite sentir que todas aquelas vidas têm valor, e os sentimentos comuns que os tornam humanos são merecedores de atenção e respeito.

E o fato de que se trata de histórias de um grupo de amigos, vizinhos e colegas de longa data faz com que cada um realmente se importe com os problemas dos que o cercam. E isso ocorre de uma maneira plausível, previsível em qualquer relação humana. No tempo do individualismo exacerbado que compõe a subjetividade neoliberal, dá até para imaginar que ainda é possível construir um mundo melhor que o de agora, com o sentimento de que o ser humano ainda não perdeu de todo a capacidade de se importar.

O mais relevante é como as coisas são feitas

Para um enredo sem grandes realizações dar certo e afetar o espectador, é necessário caprichar na forma como as relações cotidianas entre os personagens se dão. Em Amor e outros dramas elas são entremeadas por sutis delicadezas capazes de tornar belas as vidas ali descritas. A cargo do roteirista No Hee-Kyung, o dorama inclui filigranas que perpassam as situações que incluem os personagens, cada qual destacado em blocos de dois ou três episódios.

Assim, para as histórias que envolvem a rica mas não muito refinada Eun-Hee (Lee Jeong-Eun, brilhante como a mãe de família em Parasita, de Boong Joon-Ho), a personagem se veste sempre de forma simples, sem ostentação. Mas seu figurino inclui sempre flores bordadas, cores delicadas. São pequenos enfeites que manifestam, mesmo de forma discreta, sua natureza gentil sob o comportamento estabanado.

drama brindes

Analogamente, as amigas de longa data Ok-Dong (a maravilhosa Kim Hye-Ja, de Mother, 2009, também de Bong Joon-Ho) e Chun-Hee (Ko Du-Shim), à medida que a doença de uma delas avança, vão andando juntas cada vez mais próximas, até que, ao fim, as mãos dadas selem fisicamente o afeto longevo que as une.

O mesmo se diz sobre a proteína que alguém mais velho às vezes coloca no pote de arroz de alguém mais jovem. Com efeito, esse gesto comunica gentileza e sentimento. Ação recorrente em obras coreanas, esse gesto faz pensar, sobre um continente superpopuloso que passou várias vezes por períodos de fome, no que significa dispensar a um jovem a preciosa proteína necessária a seu crescimento. Mais do que amor, demonstra de um desejo de perpetuação.

O elenco é espetacular

E nada poderia ser de outra forma se imaginarmos o elenco espetacular que constitui o núcleo central da série. Como nome principal, está um Lee Byung-Hun milimetricamente soberbo, compondo uma figura absolutamente distinta do militar chiquérrimo que interpretou com o brilho de sempre em Mr. Sunshine.

Suas parceiras diretas não perdem para ele em talento e experiência. Uma delas é Shin Min-A, outra veterana estrela coreana. Em Amor e outros dramas, eles atuam juntos pela segunda vez – a primeira foi em O gosto da vingança, de 2005. Para comunicar os efeitos da depressão que sua personagem sofre, a atriz desenvolve junto com Lee Buyng-Hun alguns dos momentos mais inesquecíveis do dorama.

Shin Min-A

Para os que se interessam em compreender os fenômenos relacionados à depressão, as sequências em que Seon-A (Shin Min-A) passa pelas piores crises e encontra apoio em seu par é uma das revelações mais interessantes e tocantes sobre a doença que já vi no audiovisual.

O trabalho das pessoas que constroem esse momento no dorama expande o senso comum sobre a doença. Essa ideia é marcada sempre como se estar bem mental e emocionalmente dependesse da vontade das pessoas, e por isso a depressão encontrasse lugar sobretudo em gente fraca de personalidade. Mas Seon-A, ao lidar com a doença, manifesta uma coragem moral capaz de ensinar ao espectador uma outra ideia sobre a depressão. A ideia de que portar uma doença cerebral independe de nosso caráter e desejo de viver a vida e realizarmo-nos plenamente como pessoas.

Uma novela do Manoel Carlos sem o ranço freyreano da classe média

O segundo par de Lee Byung-Hun é com Kim hye-Ja, que com ele divide os dois últimos episódios do dorama. São episódios que, por si, certamente já constituem um longa-metragem coreano, daqueles de primeira linha. O Lee Dong-Seok de Lee Byung-Hun consolida mais uma vez o lugar do ator entre as grandes estrelas coreanas. Seu trabalho nada deve à grande dama Kim Hye-Ja. Ambos desenvolvem com imenso teor de comoção o capítulo final de uma história dolorida entre uma mãe pobre e sozinha e seu filho.

Byung-Hun e Kim Hye-Ja

O último segmento de Amor e outros dramas fecha e define a impressão de que na obra como um todo há imensas semelhanças com as tramas globais de Manoel Carlos. Até a bossa nova está lá. É como se as praias de Pureung, local da ilha onde as histórias se desenrolam, fossem as do Leblon idílico e sem luta de classes das novelas do brasileiro.

Só que em Amor e outros dramas ninguém tem empregada doméstica. Muita gente está precisando de dinheiro, e todos eles são escandalosos e gritam uns com os outros o tempo todo. Mas as questões humanas estão lá: gravidez na adolescência, depressão, déficit cognitivo, violência doméstica, preconceitos em geral, paradoxos do amor e da amizade.

Há uma universalidade em histórias sobre sentimentos

Todos os personagens são bastante autênticos, e não raro maltratam aqueles que amam. Às vezes estão muito mergulhados na própria tristeza para perceberem que outros a seu lado também se feriram. Contudo, eles nunca perdem o fio do caminho de retornarem e encontrarem nos companheiros o afeto e a alegria de terem crescido juntos. Além disso, estão certos de que esse fato os poupa de fingirem o que não são para agradar a quem quer que seja.

Poder viver momentos assim, na companhia de pessoas em que se pode confiar, é um refresco e tanto. Inegavelmente, Amor e outros dramas se desenvolve sobre a premissa de que isso ainda é possível. Mas, mais que isso, permite o reconhecimento de que muitos sentimentos e carências são universais. Estão no coração de todas as pessoas, e nos definem como humanos, não importa onde tenhamos nascido.


Ficha Técnica
Our Blues (2022) – Coreia do Sul
Direção: Kim Kyoo-Tae, Kim Yang-Hui, Lee Jung-Mook
Roteiro: No Hee-Kyung
Elenco: Lee Byung-Hun, Shin Min-A, Lee Jeong-Eun, Kim Hye-Ja, Ko Du-Shim, Han Ji-Min, Kim Woo-Bin, Cha Seung-Won, Choi Young-Joon, Park Ji-Hwan

 

 

 

Publicado Por

1 comentário em “Amor e outros dramas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *