amor com fetiche

Amor com fetiche

Última atualização: 22/04/2022

O grande público já está acostumado à diversidade do audiovisual coreano. Inegavelmente, há obras para todos os gostos: desde o cinema mais sofisticado e intelectualizado até os doramas populares lançados em streamings por todo o mundo. Inspirado em uma webtoon,  Amor com fetiche, mesmo sendo um longa-metragem, caberia mais neste último grupo. É uma produção simples e leve, de clima bem ajustado ao humor fofo que o soft power do país nos permitiu conhecer. Mas essa aparência amena é apenas um verniz que revela ousadias temáticas que o cinema ocidental nem sempre se permite.

Park Hyeon-Jin não se inclui entre os diretores coreanos celebrados por crítica e público. Sua carta de longas-metragens inclui, na última década, apenas dois filmes além de Amor com fetiche. A leitura de suas sinopses sugere que Park Hyeon-Jin é um profissional interessado nas relações humanas contemporâneas. E Amor com fetiche não foge a isso.

restaurante

Me diverte contrapor o realismo de Park Hyeon-Jin no trato das relações amorosas que envolvem sadomasoquismo – também BDSM (“Bondage, Discipline, Sado-Masochism”) – ao que apresenta a constrangedora trilogia Cinquenta tons de cinza. Machista e reacionária, 50 tons trata uma das formas de desejo fora dos padrões judaico-cristãos e burgueses como sendo algo triste, perverso e patológico. Mas, lamentavelmente, esse não é o único problema da trilogia (e, se fosse apenas esse, já seria demais).

No século 21 ainda há muita cafonice

Enquanto Amor com fetiche assume radicalmente que aquilo feito entre (pelo menos) duas pessoas adultas consensualmente entre quatro paredes só interessa a elas, 50 tons alinha-se ao que há de mais cafona e ultrapassado em termos de desejo, em pleno século 21.

A assimetria econômica extrema entre os membros do casal protagonista de 50 tons, com, é claro, a indefectível e abissal superioridade da parte masculina, é outro elemento da convencionalidade reacionária do filme. 50 tons optou por manter-se na linha do conto de fadas da mocinha virgem seduzida pelo milionário que gosta de umas brincadeiras mais violentas entre quatro paredes.

50 tons é tão ruim, que, em vez de despertar tensão (ou tesão, tanto faz), acaba sendo uma comédia involuntária, provocando gargalhadas sobretudo em sua cena clímax. Mas esse riso pode se relacionar a duas mensagens bastante diferentes.

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Uma delas é a de que estamos numa quadra da história em que gente hipócrita e moralista, vigia da vida sexual alheia, ocupa espaços de poder. Portanto, filmes sobre sadomasoquismo provocando gargalhadas podem ser um sinal de que aumenta o número de pessoas que não se preocupam mais em julgar o comportamento sexual dos outros, o que é algo bom.

A outra mensagem, não muito boa, é a que foi lembrada em um dos vídeos de Rita Von Hunty. A influencer salienta mais uma vez (mas nunca o suficiente) que o sofrimento e o flagelo físico são legitimados quando infligidos sobre determinados corpos: o corpo feminino, não-branco, deficiente e/ou LGBTQIA+. Nesse sentido, o riso na cena em que a personagem feminina é fisicamente agredida numa cena sadomasoquista indica a total permissão do público diante do que está vendo. Tratar-se-ia, neste caso, de um público que se diverte com o flagelo de mulheres, como tem acontecido em obras artísticas há séculos.

Amor com fetiche é um filme diferente

Nesse sentido, Amor com fetiche recusa a repetição dos papeis hegemônicos sociais, econômicos e de gênero que 50 tons de cinza reproduz. Sobre isso, vale também notar a coragem do ator Lee Joon-Young em assumir, numa trama que envolve sofrimento físico ou psicológico, um lugar normalmente ocupado por mulheres.

É grande sua ousadia em expor seu corpo ao flagelo diante das câmeras, inclusive num clímax que emula o risível clímax de 50 tons, mas se situa a anos-luz deste em densidade dramática e relevância temática.

Seu Jung Ji-Hoo, o submisso, não é muito superior hierarquicamente no emprego à sua mestre Jung Ji-Woo (Seohyun). Mas o personagem revela qualidades que o afastam dos modelos machistas da sociedade capitalista contemporânea. Isso lhe permite construir, junto com sua companheira de fetiche, uma relação interessantíssima, que merece um debate.

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O mais significativo, a meu ver, em Amor com fetiche é a adição de uma perspectiva que foge da ideia do sadomasoquismo como perversão, pecado e patologia, muito embora alguns personagens insistam em salientar isso. O que aproxima os personagens principais é o caráter reto de ambos, que buscam verdades para além de uma moral social hipócrita. Ji-Hoo se incomoda com a misoginia do chefe de ambos. Por isso, expõe o ridículo e a gravidade de seu preconceito sempre que encontra oportunidade. Do mesmo modo, Ji-Woo nunca julga o comportamento de seu par, respeitando seu prazer como uma forma de existir no mundo.

Sobretudo, o próprio desenho de Ji-Hoo como personagem o coloca a milhares de milhas do Christian Gray (Jamie Dornan) de 50 tons. O prazer de Gray é justificado, de forma moralista, por algum trauma infantil. Por outro lado, Ji-Hoo sabe que ser dominado é uma contraparte íntima de sua personalidade competitiva.

Quem atirará a primeira pedra?

Bem em tempo, Helio Schwartsman, em seu artigo na Folha de São Paulo intitulado Somos todos masoquistas, cita outro texto, de Paul Bloom, que busca compreender a predileção de muitas pessoas por variados tipos de sofrimento. Incluem-se aqui os sofrimentos não considerados perversão, como o risco de lesão, mutilação e morte que muitos atletas correm para alcançar seus objetivos. Por exemplo, os alpinistas enfrentam um frio intenso que pode levá-los à amputação de partes dos membros. Diz Schwartsman:

Uma de nossas obsessões é dar sentido para as coisas, incluindo nossas próprias vidas. Uma vida levada inteiramente na maciota nos parece vazia. Para que ela ganhe significado, precisamos adicionar-lhe algumas perdas, muito esforço e pitadas de ansiedade. É sob esse esquema que a busca pela dor pode fazer algum sentido. Ela dá significado a nossas vidas —e nós sentimos muita dor ao imaginar que nossas vidas não têm significado.

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Não pode haver melhor descrição das razões alegadas por Ji-Hoo para apreciar o sofrimento em cenas de sadomasoquismo. Mas por que seu prazer é considerado perversão, e o dos alpinistas não é? E por que pessoas como Ji-Hoo são vistas com repulsa? “Porque tenho algumas perversões, não significa que pode me tratar como lixo”, diz uma das personagens de Amor com fetiche, também adepta do BDSM.

E que atire a primeira pedra quem não tiver pecado.


Ficha Técnica
Love and leashes (2022) – Coreia do Sul
Direção: Park Hyeon-Jin
Roteiro: Park Hyeon-Jin
Elenco: Seohyoun (Seo Ju-Hyun),  Lee Joon-Young, Jennifer Sun Bell, Darren Keilan

 

 

 

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